Correio do Minho

Braga, quinta-feira

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O javali e eu

Os bobos

Conta o Leitor

2017-08-22 às 06h00

Escritor Escritor

Ana Maria Monteiro

Não me recordo bem do acidente. Foi tudo muito repentino. E depois parecia que o mundo tinha desabado.
“Será que acabou?”
Acordei nesta espécie de floresta tendo ao meu lado um javali de olhar manso e curioso, e esta mala que, pelo conteúdo, já constatei que me pertence. O javali, aparentemente, também é meu - pelo menos não me larga, segue cada um dos meus passos.
Procuro uma saída há vários dias. A floresta é densa e sempre igual. Calculo que estou algures no sul de França; creio que sobrevoava próximo de Marselha na altura em que… sei lá, não sei ao certo o que aconteceu.
“Andarão a procurar-me? Levará muito tempo? Ou ficarei aqui para sempre?”
Pelo menos tenho algumas folhas de papel (estavam na mala), uma esferográfica e, ao que parece, um amigo. Caça pelos dois. Tem sido uma bela ajuda. É engraçado: vai buscar comida e traz, comemos juntos. Há coisas que não consigo nem meter na boca (noto-lhe um certo desapontamento no olhar), mas outras até não são tão más quanto isso, enfim… não fosse ele e decerto já teria morrido de fome.
Faz-me lembrar a raposa da minha história (terá sido uma espécie de antevisão?). Ele vai e sei que regressa, tal como ela; e quando lhe sinto os passos começo a ser feliz. Depois chega e senta-se ao meu lado - sim, e cada vez mais perto. E diz-me coisas sem falar. E eu, lentamente, também lhe tenho contado tudo.
Depois caminhamos. Ele sabe que procuro os da minha espécie, sabe que quero regressar ao meu mundo. E acompanha-me.
Ontem improvisei uma espécie de trela e coloquei-lha. Ficou feliz. Só lhe faltou começar aos pulos. E então passámos a andar assim.
Quando paramos, e eu paro com frequência porque tenho problemas de ossos, ele senta-se comigo e tiro-lhe a trela, mas, desde que lha pus, só volta a andar quando lha ponho outra vez. Já lhe contei a história toda do Principezinho e ele ouviu com muita atenção. Chamei-lhe raposa e pareceu-me ficar dividido: percebeu o elogio, mas não lhe agrada ser raposa. Por outro lado, quando lhe disse que eu próprio seria o principezinho vi-lhe no olhar (juro que vi!) um ar escarninho. Para ele, eu sou a sua rosa, não tenho dúvidas quanto a isso. Trata-me, ampara-me, adormece junto a mim aquecendo-me; protege-me muitas vezes dos perigos da floresta, algumas sem que eu saiba; trata-me, acarinha-me, mantém-me vivo.
É um javali adulto. Achou um bocado pateta a história do elefante engolido por uma jibóia. O olhar dele expressou-o bem, só lhe faltou dizer: “Percebe-se logo que nunca viste uma jiboia! E, provavelmente, nem um elefante.”
Não lhe expliquei. Para quê? Além disso nunca vi, realmente, uma jiboia. E também nunca tinha visto um javali. Pior de tudo: escrevi uma história de amizade antes de a ter realmente vivido.
É um javali adulto. Achou um bocado pateta a história do elefante engolido por uma jibóia. O olhar dele expressou-o bem, só lhe faltou dizer: “Percebe-se logo que nunca viste uma jiboia! E, provavelmente, nem um elefante.”
Mas assim, sendo dois, somos seis: eu, Antoine, adulto, 44 anos, aviador, escritor nas horas vagas e perdido nesta floresta; ele, javali, adulto, e de profissão atual cuidador e amigo. E agora na minha perspectiva: eu de novo, o principezinho encontrado em mim e ele a raposa que me conquista e se faz conquistar; e a versão dele: ele, principezinho, dono e senhor do seu pequeno mundo onde encontrou uma rosa sensível e vaidosa (sim, sou vaidoso), que estima, trata e protege e eu, uma rosa linda (aos olhos dele, claro), frágil (muito mais do que gostaria de admitir) e efémera, profundamente efémera e carente.
E caminhamos. Caminhamos, paramos, comemos, dormimos e continuamos.
A noite na floresta é fria e cheia de ruídos que desconheço. Mas a presença dele tranquiliza-me e aquece-me. Ele cava uns buracos enormes onde cabemos os dois e depois vai pra lá e convida-me:
“Encosta-te, amigo, aconchega-te”, parece dizer-me. E eu aceito, entro e obedeço. Aninho-me nele e adormeço. Num sono sem sonhos, povoado de cheiros e sons que começam a ser-me familiares - e a entranhar-se-me.
Dos livros que escrevi, o Principezinho era o meu favorito. Falo no passado, não porque tenha deixado de ser o meu preferido, mas porque precisa de uns reajustes. Quando regressar vou alterá-lo para uma segunda edição (espero que essa segunda edição aconteça, nunca se sabe). O “meu” javali também tem que entrar na história, já não imagino a amizade e o companheirismo sem ele.

Há vários dias que não escrevo. Não sei quantos. Acho que estive doente (seguramente ainda estou). Sei que o javali tomou conta de mim, como lhe foi possível. Imagino que tenha ido além dos limites desse possível. Vejo que está exausto. Quando abri os olhos ele ali estava, como sempre, os seus olhos pareciam melancias e havia neles uma angústia do tamanho do mundo. Sorri-lhe, disse-lhe “Olá!” e o olhar dele iluminou-se como o sol e ganhou as cores do arco-íris.
Quis pôr-lhe a trela para continuarmos a minha procura pelo mundo “civilizado”, mas ele não permitiu. Com alguma dificuldade, levantei-me; mas ele permaneceu sentado. Fiz menção de começar a andar (doía-me cada bocadinho de mim), mas ele nada - não se mexeu. Compreendi. Não estou em condições de me meter de novo a caminho, estou demasiado fraco, preciso recuperar.
Penso que lhe deveria ter dado um nome - decerto ele teria apreciado. Mas não o fiz nem o farei, para mim ele é javali, “O Javali”. Existem muitos, devem ser milhares ou milhões, mas ele é o único. Os outros são todos iguais; ele é meu, o que conversa comigo em longos silêncios dourados de entendimento.
Saiu de novo e regressou há pouco, trazia uma espiga de milho e um olhar guloso. Fiz lume como aprendi há muitos anos (bendito o dia!) e assei-a. Pareceu bastante surpreendido com o resultado mas, a avaliar pela forma como comeu, acho que adorou. De certeza que gostou mesmo, porque lhe dei mais uma parte da minha metade e ele não conseguiu resistir e aceitou. Achei deliciosa a mistura de culpa e brilho no olhar que lhe vi enquanto comia num ato de gula egoísta que ele considerou quase como uma prevaricação.

Passaram já quatro dias desde que acordei e o javali não me autoriza a seguir viagem. Não posso dizê-lo de outra forma. Ele, literalmente, não permite. O meu javali, meu guardião, minha raposa.

Sinto que estou pior. Não poderia, ainda que quisesse, prosseguir a caminhada. O javali está aqui, comigo, sempre. Só se ausenta para ir buscar mais comida. E de cada vez é mais rápido, menos criterioso até no que escolhe para trazer. Tem pressa. Noto-lhe a apreensão no olhar quando regressa. E o alívio quando percebe que respiro e estou vivo. Sorrio-lhe de todas as vezes (continuarei a sorrir-lhe enquanto puder - talvez morra com um sorriso no rosto).
O javali aprendeu a trazer-me água. Conseguiu montar um intrincado esquema de folhas e ramos e perde metade pelo caminho, mas traz-me a água. Água daquela sobre que escrevi no livro, da que sacia todas as sedes. A sua compreensão da história que lhe contei vai muito além do que eu lhe possa ter transmitido. É um conhecimento ancestral, que já nasceu com ele e não precisa de escritores para explicar.

À noite ele olha para o céu. Acha que vou morrer. E eu sei que talvez tenha razão - apenas não desisto de acreditar que posso regressar, apesar das dores, apesar da guerra, apesar de tudo… quero voltar. Além disso, também desejo completar a minha história. O meu Principezinho ficou incompleto, eu ainda não sabia nada do que estou a aprender. E se não regressar como é que vocês irão conhecer o javali? O meu javali. O que não precisa de palavras. O que só fala com os olhos e com o corpo? O amigo mais completo, sincero e leal que poderia imaginar?

Ele sabe que não poderei levar o corpo comigo, mas não está nem um bocadinho interessado em imaginar que eu poderei ser cada uma daquelas estrelas. Sabe que não, que serei apenas uma. Acredita que, se memorizar o céu, vai conseguir descobrir, depois, qual delas eu sou. Está confuso, o céu é diferente todas as noites. E eu não tenho coragem para lhe contar a verdade. Não tenho.
“Desculpa amigo, terás mesmo que aprender a amar as estrelas.”
“Tal como eu irei finalmente perceber que não interessa nada descobrir se a ovelha comeu ou não a rosa.”
Esquece o céu, esquece a história que te contei, o que acreditas que te ensinei: “só se vê bem com o coração”. Não é assim, amigo. Bem sabes. Foste tu quem mo revelou e, se eu pudesse, iria explicá-lo à raposa. A verdade é diferente: “só se vê bem no coração”. Esquece. Fecha os olhos. Vê no coração. Sim, amigo, aí. Onde me encontras, onde estou - onde me puseste.

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