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A Cor do Amor

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  A Cor do Amor

Voz aos Escritores

2019-03-08 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Cresci a sentir-me desigual. Entre mim e o mundo erguiam-se muros de pedra e cal. Muros altos. Paredes intransponíveis. Encolhia-me no canto do meu mundo. Da janela acanhada do meu mundo avistava meninas que eu não queria ser, meninos com os quais não queria conviver. Meninas de cor-de-rosa a desprezarem-me. Meninos de cinzento a humilharem-me: larilas, paneleiro, maricas. Palavras pretas que eu estranhava. Pedras arremessadas cujo significado ignorava. Pedras por mim guardadas, usadas no erguer da minha catedral onde não cabia o mal.
Cresci a sentir-me desigual. Era de papel o tecto da minha catedral. O tecto do meu mundo não era de estrelas, nem de Lua prateada e pasmada. Nele voavam páginas de livros, histórias de heróis que eu não pretendia ser, aventuras de piratas que eu não queria imitar, contos de príncipes e princesas a fantasiar, felizes para sempre no mundo de encantar. Nos livros questionava. Nos livros imaginava. Nos livros procurava.
De que cor é o amor?
Era uma vez um menino que não queria comparações, nem títulos, nem condenações.
Era uma vez um menino que só queria ser ele, sem dor, ser abrigo de amor.
Vitória, vitória, não acabou a história…
Na catequese aprendi o fardo do pecado. Na catequese te conheci, meu amado. Estava amedrontado. No olhar de carvão leste-me a solidão. No corpo tolhido a incompreensão. Deste-me o olhar azul, um oceano de aceitação, apartaste a espuma das ondas, estendeste-me a mão. Eu agarrei-a, tábua da salvação, sem saber que iria ser a tua perdição. Crescemos escondidos do mundo. Luís, vem comigo ser feliz, sussurravas-me ao ouvido inquieto, tocavas-me no corpo desperto. Eu não te quis, não te segui para ser feliz. O medo aprisionou-me. Vivia num cárcere de portas abertas, habitante do mundo das trevas. As palavras da minha mãe, as palavras do meu pai, filho pervertido é filho malparido, filho desnaturado é filho desonrado, filho macho com namorado é o maior pecado, antes a morte que essa sorte, antes drogado que rabeta apontado. Fui filho desafortunado, filho mal amado que do podre lar não quis ser escorraçado, que no podre lar pranteou o triste fado. Fui por mim anulado, por mim renegado. Recalquei o meu ser amargurado.
De que cor é o amor?
Vitória, vitória, não acabou a história…
Fracasso, fracasso, persiste o erro crasso.
Tu, amor, assumiste-te e foste enxotado, na rua desamparado, pelos que mais amavas desprezado, cão sarnento, espancado, abandonado. A sorte da morte a ti te tocou. Quis seguir-te na morte mas a força me faltou. Rastejei no vale dos caídos. Queria o ânimo dos erguidos. Até para desistir da vida carecia de coragem. A vida é mera passagem para a outra margem. Leva-me, Senhor, destrói a minha dor. Acoita-me, Senhor, sou verme pecador. Suplicava-Lhe, enquanto inundava, amarfanhava, despedaçava a carta que me deixaste, a derradeira carta em que me pedias, sê feliz, Luís, não faças o que eu fiz.
De que cor é o amor?
Vitória, vitória, não acabou a história…
Fracasso, fracasso, já tive o meu pedaço.
Por anos vagueei nas brumas da dor. A culpa quebrava-me o vigor. Enredava-me no pudor. Navegava nos teus olhos, amor, no azul marejado para sempre desbotado, no azul desvairado pela terra tragado. Sentia-te ao meu lado, apaziguado, livre do ferrete do preconceito, liberto das amarras dos rótulos, a planar num mundo onde não existe dor, nem horror, onde só há amor, um mundo isento de cor e de temor. Sê feliz, Luís, ciciavas-me nos sonhos, sê feliz, Luís.
Trabalhei. Estudei. Paguei os estudos. Sempre fui bom aluno. Os livros, meus refúgios, instruíam-me, alienavam-me do mundo, ensinavam-me o mundo. Sou médico por vocação.
Sou psiquiatra por opção. Sabes, amor, ao ajudar os pacientes, sinto-me bem, ao ajudar os desesperados, redimo a culpa. A dor deles é a tua. Sabes, amor, eu e o Pedro decidimos casar. Queremos ter um filho, vamos adoptar. Os pais do Pedro chamam-me filho, tratam-nos com respeito, oferecem-nos mimos, dão-nos calor. Têm orgulho em nós, amor. Sobre os meus pouco sei. Sou órfão de pais vivos despojado de dor. Aprendi a aceitar o seu desamor. Não lhes guardo rancor. Quero paz interior. Tu e o Pedro ajudaram-me a encontrar o meu valor.
Cresci a sentir-me desigual. Concluí que ninguém é igual.
De que cor é o amor?
É um arco-íris o amor. Cabe a cada um pintá-lo da sua cor. Um tom que não manche o tom do outro, pincelado com primor. Um tom a tinta permanente, como deve ser o amor. Eu escolhi o azul dos teus olhos, amor. Ao colori-lo, ouço a tua voz, sê feliz, Luís. Eu sou feliz, amor.
Vitória, vitória, acabou a história.

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