Correio do Minho

Braga, quinta-feira

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A galinha da vizinha é sempre melhor que a minha - Ana Cardoso

Os bobos

Conta o Leitor

2012-07-03 às 06h00

Escritor Escritor

A versão da vida passa pelo sonho (ou penso que deveria passar) e, consequentemente, pela imaginação (i)racional de cada um, sendo, muitas vezes, atingido o impensável, inconcretizável, impossível.

Peço então permissão ao leitor, para usar o imaginável nesta história, sendo que, no que vou contar, do imaginável ao hipotético a distância é curta. Bastavam meia dúzia de palavras para resumir a história que vou contar, mas não querendo em suma dizê-lo, atalharei entre as palavras para de mansinho, expressar a realidade que, apesar de o ser, não deixa de presentemente estar imaginada na minha cabeça. Imaginada, desconfiada, vivida, isso pensará o leitor, eu cá, não quero pertencer a ela senão como narra-dor ou figurante.

Tal como todas as histórias, esta também poderia iniciar-se por “era uma vez”, mas preferencialmente, ou antes, caprichosamente, direi “é uma vez”. E é a vez de a contar!
Na rua do Roseiral vivem amontoadas pessoas em moradias em banda. Chamemos amontoadas aos casais e filhos, sogras, viúvas, religiosas, beatas, velhinhos e solteirões que descrevem todo um cenário cinematográfico a esta rua.

Paulo é um prestigiado advogado, dos com mais estudos do bairro, que só vive ali por respeito às origens de sua esposa, D. Maria, uma empregada doméstica tal como todas as outras mulheres casadas da rua. Faltam oito dias para a cerimónia de prata, perfazem vinte e cinco anos de união, dos quais (pensam) ter sido felizes na sua totalidade. Realmente, atrevo-me a dizer que a felicidade é “toda diferente, toda igual”, cada qual constrói e vive a sua, diferenciada nas circunstâncias, mas igual na produção do sentimento, seja ele choro ou riso, explicável ou não.

De qualquer forma, o casal era feliz e preparava-se para festejar o que seria a renovação das alianças. A amizade bairrista era sentida principalmente entre as senhoras e, nesta altura de festejo e ao mesmo tempo de murmúrio, não faltavam “amigas” prontas para o serviço. A ocasião assim o pedia, mas a D. Isabel, mulher recatada e submissa, não saciava a fome de saber das suas vizinhas, de onde seria o copo de água, de quantos convidados iam, o dinheiro que se ia gastar… Pois viria a saber-se que a festa iria abranger a família, a do bairro, pois estariam todos convidados; mais se soube que, longe de grandezas, a festa se daria na praça e contava-se com a ajuda de todos, das “amigas”, cada um leva o que pode, o que quer ou o que, muitas vezes, lhe dá mais jeito.

Foi assim que a população se pôs alerta e, surpreendentemente, se dispôs, uns mais que outros, alguns até demais. Matou-se um porco pequeno, mataram-se as galinhas, amassaram-se quilos de massa para rissóis e, em Setembro, vinho não faltava. Também os bolos se encarregaram de aparecer. Adivinhavam eles que nos tempos vindouros o açúcar seria preciso, para adoçar as dificuldades e as manhas do casamento. Digo de sincera que nunca vi casório sem bolo!

A preparação corria de bom grado. No dia da festa não faltavam mesas de metros cheias de comida, que a fartura é boa coisa e coisa do povo, não faltava gente do bairro e concertinas, que bailarico é coisa presente e é coisa de gente. Diziam as pessoas que a refeição caía bem, que as cozinheiras se tinham esmerado, ouviam-se comentários: “Este arroz está melhor do que o da minha mulher”, penetrava a ideia da gíria, “o do outro é sempre melhor que o meu”, não porque eu sou mais fraco, mas porque sou monótono, o outro é que é diferente e, consequentemente, me traz a diferença.

Deu-se a cerimónia, fatos arrojados, dos que não saem do armário faz tempo, completaram-se as alianças, beijo não houve, não sei porquê, recatada e envergonhada D. Isabel. Não houve beijo, não senhor, no entanto o problema não foi de expressão, foi de amor. Não o amor de Isabel, que esse era apenas um, mas o amor de Paulo que se estendia, ao que se apura, a uma solteira que habita o bairro há meia dúzia de anos.

A história da traição sabia Isabel, muito antes da boda, que a mulher tem olho nisso e, se não tem, tem razões que se conhecem. As horas más a que chegava, o trabalho infinito e as reuniões que não acabavam, o cheiro a perfume do casaco, o dinheiro que se ia e não se via em que se gastava denunciavam Paulo, aos poucos, na aventura que embarcava há três anos.

Paulo amava a sua mulher e não sou eu que o digo, é o que me contam. A traição não surgiu resultado de um mau casamento, resultou do outro ser melhor que o meu, de ser novidade, de ser divergente. Paulo assumia com perfeição o seu papel de marido e pai, à excepção deste percalço, este que Isabel sabia e perdoava e silenciava, que há quem diga que o silêncio é a maior das provas de amor.

Além disso, Isabel reflectia na ideia uma série de regalias do matrimónio, mantinha a saudade de anos em conjunto e não tinha a bravura do confronto da verdade nem a “lata” da franqueza, sim, que às vezes a frontalidade é dura e mal criada.
Escusado será dizer quem saberá destes acontecimentos e que, por sinal, me contou; só em sonhos, claro, que mais uma vez, toda a gente sabe que estas coisas na realidade não acontecem, só se imaginam (mas será?).

Fique o leitor impressionado com a antiguidade do assunto, digo na verdade, que a galinha do vizinho está sempre no meu caminho! Mas perdoai-me se denunciei uma realidade, não foi de intenção, veio tudo da imaginação, da minha, que por mais tomo em respeito todas as outras. Desculpo-me ainda se denunciei um amor, não foi de consciência, veio tudo do coração, do meu, que por mais temo o dos outros, por tornarem realidade a minha imaginação.

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