Correio do Minho

Braga, quinta-feira

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A minha entrada na Universidade

Os bobos

Conta o Leitor

2014-07-02 às 06h00

Escritor Escritor

Luna Braga

Cheguei, na noite daquela segunda-feira, 24 de Outubro de 2011, ao último piso do edifício onde ia, pela primeira vez frequentar uma instituição de ensino superior. Sentia-me um pouco angustiada e, ao ter chegado com a antecedência que julguei conveniente, porque primo pela pontualidade - as aulas teriam início às 19H00, com a Unidade Curricular de História - deparei com um senhor, aparentemente da minha idade, encostado ao muro de varanda sobranceira à enorme escadaria de mármore branco.

Após tê-lo cumprimentado com o habitual ‘Boa Noite’, com um misto de curiosidade e no desejo de afastar o nervosismo por eu já não ser jovem, interpelei-o:
- “O Senhor é o Professor?”
- “Não, não, sou aluno”, respondeu e, por acaso veio, depois, a ser nomeado delegado de turma.

Fiquei bastante mais tranquila (recordo ainda o nó que senti na garganta quando entrei, pela primeira vez, na escola primária, onde, no meu tempo, os pais não passavam da porta de entrada. Era mesmo uma espécie de aventura para nós, onde nos estava reservada a indispensável régua para as amargas palmatoadas. Nessa época era tudo muito austero!

A amiga que teve a amabilidade de me acompanhar naquela noite e que me incentivou a tomar a decisão de continuar os estudos, tendo até feito a minha matrícula, despediu-se então de mim, recomendando-me que solicitasse sempre a utilização do elevador, pois eu havia deixado, apenas há uma semana, as canadianas, devido à recente colocação de uma prótese na anca esquerda.
Foram chegando mais alunos e confirmada a sala, entrámos e como é meu hábito escolhi um lugar bem à frente, para melhor ver e ouvir. As amplas janelas de vidro deixando admirar a beleza da cidade iluminada, transportaram-me, gostosamente ao fascínio da cidade que vive na minha memória: Luanda!

A sala estava praticamente repleta e eis que nos surge, de fato cinzento, o Professor que nos cumprimentou amavelmente, relançando o seu atento olhar sobre a turma. Éramos, efectivamente, muitos e creio que o docente nunca imaginou, como afinal referiu, deparar-se com alunos de uma idade já considerável. Por isso não fez, como nos confessou, o discurso que, com a devida antecedência, havia preparado.

Lembro que, a seu pedido e como forma de se estabelecer uma relação mais próxima, de forma a conhecermo-nos, cada um de nós foi fazendo a sua apresentação. Tendo esta terminado, reparei que a maioria dos colegas referiu a respectiva idade, o que eu não tinha feito. Mas porque nunca tive, nem tenho qualquer preconceito em revelar a minha idade, no final revelei-a dizendo:
- “Eu sou a avozinha da turma !”

Gerou-se uma série de risos que considerei francos e saudáveis, se bem que possivelmente houvesse quem pudesse pensar que eu não aguentaria a empreitada a que me propunha.
Para tomar o pulso aos nossos conhecimentos e interesse pela disciplina, o docente entregou-nos uma folha A4 com a pergunta sobre o nosso conceito de História e algumas afirmações com resposta de escolha múltipla. Que me recorde, errei duas e uma delas era mesmo imperdoável, pois situei o nosso primeiro monarca, D. Afonso Henriques, no século X, quando bastava-me recordar a Batalha de S. Mamede em 1127! A outra questão era uma espécie de ratoeirazinha:
- “Vasco da Gama ao dirigir-se para a Índia, rumou a norte, a leste ou a sul?”. Muito convicta da minha acertada resposta, respondi: “a leste”. Nem pensei que sendo a viagem por via marítima, as caravelas teriam, claro, de primeiramente navegar para sul a fim de contornar o continente africano, enfrentando o temível Adamastor.

Eram três horas de aulas que nunca foram monótonas, pelo contrário, eram por nós escutadas com todo o interesse, e, havia sempre um pequeno intervalo para retemperar energias, ou seja, a nossa capacidade de concentração.
Há coisas que nos marcam e uma das que muito me sensibilizou foi a consideração que o docente tinha pelos trabalhadores estudantes, fazendo assinar a folha de presenças apenas no final da aula, pois alguns vinham mesmo de muito longe, de outros concelhos, pelo que lhes era impossível chegar a horas.

Uma vez, naqueles momentos em que se faz uma pausa para aliviar a tensão e a conversa se proporcionou sobre o facto de todos guardarmos um segredo, o Professor disse que no fim da aula nos revelaria o seu. Eu pressenti o que seria, mas por timidez optei por não me pronunciar e, passados poucos segundos, um colega, aliás muito participativo, atreveu-se a dizer, sem rodeios, o que eu havia pensado:
- “Já sei o seu segredo! O Professor veio para a Universidade já adulto, como nós!”
- “Acertou no alvo” retorquiu o Professor e eu senti uma profunda e respeitosa admiração por esse facto. Eis a razão de saber estimar e considerar as dificuldades que nós, e sobretudo os trabalhadores estudantes, tínhamos de enfrentar. Foi uma pessoa que a todos estimou, frisando, desde o início, que um dos requisitos por que se pautava era o da VERDADE, e, como tal, era isso que de nós requeria.

Recordo, ainda, o nosso último dia de aulas, em que o referido Professor não escondeu a sua emoção pelo êxito de uns, pelo não sucesso de outros devido a complicações e caprichos da Vida.
Em pé, junto à porta, num silêncio significativo, ia-se despedindo de cada um de nós com um efusivo abraço. Este Professor sabe que permanece na lembrança dos que partilham os seus princípios.

Mas, hoje, decidi transmitir-lhe a minha mensagem de reconhecimento, partilhada por muitos dos seus ex-alunos. É a minha sentida homenagem a um docente que ama a sua profissão e como tal a exerce com todo o gosto e empenho, defendendo que o êxito dos alunos é sinónimo do êxito do respectivo Professor.
Bem haja, Doutor A.M.S. RIBEIRO

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