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Artes de ser católico português

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Artes de ser católico português

Ideias

2019-03-18 às 06h00

Moisés de Lemos Martins Moisés de Lemos Martins

A religião tem uma função social e as sociedades religiosas têm uma função na vida pública. Em Portugal, por toda a segunda metade do século XX e até aos nossos dias, frei Bento Domingues constitui a voz que melhor tem interpretado e dado público testemunho da condição antropológica da religião, ela que é índice de cultura e promotora de civilização.
E embora possamos dizer que o pensamento de frei Bento Domingues toma assento nas Ciências da Religião, e especificamente na Teologia Católica, o território epistemológico em que se move, pelas preocupações historiográficas, antropológicas e sociológicas que manifesta, é próprio das Ciências Sociais e Humanas, e especificamente dos Estudos Culturais.
Ao trazer o catolicismo para o espaço público, frei Bento Domingues não se tem cansado de interrogar as vertigens do humano, apontando-lhe sempre um horizonte de esperança. A sua palavra, no meio de nós, tem-nos iluminado, qual fulgor frágil, por dentro da nossa precariedade, desesperança e dúvida.

Em cerimónia convocada para o efeito e realizada, há cerca de um mês, a Universidade do Minho atribuiu a frei Bento Domingues o grau de doutor Honoris Causa em Estudos Culturais. Nada me poderia dar maior alegria académica do que ver a minha Universidade, a Universidade do Minho, impor as insígnias doutorais a este dominicano, assim fazendo valer a grandeza do espírito que a habita.
Ao prestar este tributo a frei Bento Domingues, a Universidade do Minho enaltece um pensamento social humanista singular, que sobressai no contexto cultural português, dada a grandeza da atividade científica, pedagógica e cívica do homenageado, o que constitui um exemplo inspirador de sabedoria, tanto para a Universidade e a sociedade em geral, como, sobretudo, para as novas gerações de estudantes.

Frei Bento Domingues é um exemplo de sabedoria, porque é extraordinária a sua dimensão humana, como expressão de um alargado conjunto de ideais generosos, de que fez o combate de uma vida. É um exemplo de sabedoria, porque a sua vida teve sempre no horizonte um sentido de comunidade. É um exemplo de sabedoria, porque não receou ser inconveniente, sempre que a necessidade do Outro o exigiu. E o maior ensinamento que podemos receber deste dominicano é não termos na vida outra medida que o coração.
Frei Bento Domingues exprime o que em Portugal melhor pode ter a religião, e muito particularmente o catolicismo. Porque, em contrapartida, são demasiadas as sombras e os equívocos em que a Igreja portuguesa se deixou enredar em praticamente um século.

Bem sabemos o que Salazar nos andou a ensinar pelo século XX adiante. Oliveira Salazar resumiu, esplendidamente, em janeiro de 1949, na sessão inaugural da II Conferência da União Nacional, realizada no Porto, a situação da Igreja em Portugal: “Portugal nasceu à sombra da Igreja, e a religião católica foi desde o começo elemento formativo da alma da Nação e traço dominante do carácter do povo português. Nas suas andanças pelo mundo - a descobrir, a mercadejar, a propagar a fé - impôs-se sem hesitações a conclusão: português, logo católico”.
Ou seja, em Portugal, Nação e Catolicismo são uma e a mesma coisa, devendo por isso ser uma só carne. E por essa razão, não tinha sentido haver no país outra voz que a de quem incarnava o destino nacional, o Governo do Estado Novo, comandado desde 1932 por Oliveira Salazar. A Igreja ouviu em 1949 o que já sabia, há muito, porque foi voluntária a sua submissão ao salazarismo. Da conversa com o Regime haviam-lhe sido garantidos, todavia, uns pratos de lentilhas. E esses nunca a Igreja os enjeitou, muito para lá da queda do Estado Novo.
Dois exemplos.

Depois de ter sido aprovada, em 1989, uma Lei de Televisão, que consagrou o fim do monopólio estatal, abrindo a televisão à iniciativa privada, a Igreja veio reclamar um canal de televisão. Em 1990, Luís Marques Mendes, porta-voz do Governo, defendeu publicamente que a Igreja merecia um “tratamento preferencial”, “um tratamento privilegiado”, porque era uma instituição “fundamental na sociedade portuguesa”, tinha “experiência na comunicação social” e constituía uma “tradição moral, cultural e histórica no nosso país”.
E a mesma coisa acontece com a Universidade Católica, como no-lo lembrou Alexandra Borges, a 13 de fevereiro passado, na reportagem que fez para a TVI 24: a Universidade Católica fatura mais de 65 milhões euros e não paga impostos; cobra propinas semelhantes às das outras universidades particulares, mas goza de uma isenção fiscal.

Nos dois casos, deparamo-nos com o mesmo velho hábito de um catolicismo que se identifica com a Nação conservadora, a troco de um tratamento de privilégio, como se se tratasse de um direito adquirido.
Pois bem, em frei Bento Domingues a arte de ser católico português é de uma natureza completamente diferente. Constituiu-se entre nós como a expressão maior de uma Igreja que intervém no espaço público, mas o seu compromisso é o destino da comunidade e dos indivíduos, sobretudo o destino dos mais humildes, dos mais frágeis e dos mais desamparados.

Um exemplo de humanidade e de cidadania como este tem um poder redentor no seio da comunidade. Quando não há meio de abrirmos mão da promiscuidade que em permanência abraça a política, a Igreja, a Banca e os grandes interesses económicos. Quando nunca se legisla sobre os verdadeiros conflitos de interesses, e as funções de regulador e regulado se misturam à descarada. Quando a luta contra a corrupção parece cingir-se a uma retórica vazia. Quando no Estado ninguém cora de vergonha por o pé lhe andar sempre a fugir para o interesse privado. Quando o espaço da cidadania se comprime, desvitaliza e empobrece, cercado por esta "originalidade portuguesa": 95 políticos com lugar cativo, como "comentadores pagos", na rádio, televisão e imprensa escrita, quais guardiões do templo da democracia (Expresso/R, na edição de 2 de março). Quando à semelhança do passado, Portugal se parece cada vez mais com uma aldeia, em que a capital do país, os partidos políticos e as instituições do Estado estão capturados por redes de proximidade, enredando-se mais e mais em solidariedades familiares e de vizinhança.
Exaltemos, pois, quem faz de um sonho de comunidade o único horizonte da sua intervenção pública! E sigamos-lhe o exemplo.

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