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Voz aos Escritores

2018-11-02 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Oque faço sentado, abafado, amargurado entre quatro paredes bolorentas, rodeado de outros velhos, aturdido pela cacofonia da apresentadora da televisão a feirar satisfação encenada, a apregoar pílulas milagrosas, banha da cobra, baba de caracol, tónicos de salsaparrilha, elixires da juventude, máquinas de ginástica, cogumelos auriculares e cintas esbeltas à plateia entrevada, mouca, babosa, catatónica? Forever young, I want to be forever young, trauteia o enfermeiro José. No ecrã ofuscante, as mamas compradas da loira de farmácia, os lábios botox e a lábia de mulher fatal armada em sensual nada me dizem. Há muito que um par de tetas deixou de me importunar. É uma das raras vantagens da velhice, o sossegar do corpo espevitado, o amainar da carne fraca.
O Manuel, de algália ao dependuro, teima na virilidade, unta de vinte euros as mãos da doutora Alice que acresce umas cócegas inconsequentes ao mudar de cada fralda emporcalhada. A doutora Alice enojada de voz comprada, a fingir ralhos patéticos - tão porquinho, faz tanto cocó, vai levar tautau no rabinho - a tratar-nos como se fossemos néscios, mentecaptos. A doutora Alice a reparar na minha apatia, a chegar-se a mim, a esperar a nota que não tenho, a trocar o sorriso financeiro por um esgar de enfado, a estender-me um sudoku, a impor-me, vá lá, ocupe-se, toca a fazer tempo. O tempo faz-se, doutora Alice?
Tempo que passou. Tempo que se esgotou. Tempo ofertado. Tempo esbanjado. Só se estima aquilo que se compra. Só se valoriza o que não se tem. A vida passa a voar, sabia, doutora Alice? O que não morre novo de velho não escapa, sabia, doutora Alice? A mocidade é Sol de pouca dura, é bola de sabão, é fogo-fátuo da paixão. Também quer chegar a velha, uma velha desprezada, maltratada, aviltada?
A doutora Alice dita o nosso único banho semanal, o sabão racionado, a ração minguada, a sopa aguada, a toalha contada, a fralda rasgada, o fedor a velho entranhado nas peles enrugadas, manchadas, chagadas, nos membros quietos, nos cabelos escassos, branqueados, desgrenhados ou oleados. A doutora Alice a relembrar-nos, para o que pagais bem servidos estais, a ameaçar-nos, quem abrir o bico enrugado está tramado, quem está mal que se mude, a porta é a serventia da rua, estrupícios, pés na cova, bacocos sem préstimos, só dão arrelias à gente, mal-agradecidos, acautelai-vos, sobram candidatos ao choco, quiçá velhos mais aligeirados nos modos, mais carregados nos bolsos, mais contidos no expelir das porcarias. A doutora Alice capitaneia as nossas existências empurradas e vê nas urinas, nas fezes, nas secreções, ultrajes diuréticos, afrontas obradas, desfeitas fungadas, injúrias escarradas à sua pessoa frustrada mas alteada.
Os velhos encolhidos, emagrecidos, amedrontados, olhares deslavados, mortiços, olhares vazados, bocas mirradas, desdentadas, bocas caladas. A doutora Alice é mãos largas nas pastilhas do sono. Os velhos cabeceiam de dia, não aborrecem de noite. Desligam-se as campainhas das camaratas, se algum velho berrar não se ouve no primeiro andar. Manuel tem um dormir agitado, ergue-se do leito urinado, cai no chão onde fica tombado. Chama em vão pela mãezinha, pelo enfermeiro José, pela doutora Alice, rouco, choroso, enregelado. Dona Clementina apieda-se dele. Abeira-se, robe esfarrapado, enxovalhado, andar arrastado. Acoita-lhe a cabeça careca, magoada, no colo escanzelado. Ameiga-o. Aquieta-o. Retoma o ninar dos filhos ausentes, revive a maternidade, o tempo em que a vida era amor, aconchego, felicidade, dorme, dorme, meu menino. Manuel deixa-se ir, embalado, iludido, embargado, mãezinha, voltaste. Dona Clementina enxota o cotão do chão, encobre as pernas magras, esconde a negrura dos hematomas, afasta o medo da solidão. Quando temos alguém no colo sentimo-nos ao colo. Sim, meu filho, voltei.
O que faço deitado, gelado, acordado entre quatro paredes bafientas, rodeado de anciãos perdidos e lacrimosos? Por que tarda a morte em chegar? Queria estar noutro lugar. No meu banco de jardim, a Primavera a brilhar, os pássaros a chilrear, o Sol a acalentar, o teu sussurrar, a poesia no teu falar, os lábios no meu ouvido a adejarem carícias, a soletrarem, a-moo-te muu-iii-to. Eu a rir. A beijar-te. A amar-te.
Quero ir ao teu encontro. Por que tarda a morte em me levar? Por que se esquece de nós, dos velhos solitários, abandonados, marginalizados? Tão tristes, pobres e decrépitos que até da morte somos enjeitados.
As mãos da dona Clementina afagam-me a madrugada no rosto olheirento. A boca ressequida beija-me a face molhada. Cheira a tangerina, a dona Clementina. O odor a citrinos repele o fedor a podridão, traz-me o teu perfume de Primavera, a brisa cálida do Verão. A boca bondosa lê-me romances de amor. Ouço nela a tua voz.
Ofereço-lhe um sorriso ortopédico, prometo-lhe, um dia levo-a comigo, dona Clementina. Ela pergunta, aonde, meu querido?
Ao meu banco de jardim.

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