A responsabilidade de todos
Voz aos Escritores
2019-12-27 às 06h00
“Até ao Natal salto de pardal
de Natal a Janeiro salto de carneiro
e de Janeiro a Fevereiro salto de outeiro”.
Lembro-me tão bem destes provérbios alusivos ao crescimento dos dias, escutados, vezes sem fim, nesta época do ano! Parece-me, até, ouvir o suspiro de infância pelo sol e pelos dias grandes. Não gostava dos regressos da escola a casa, apressados, pela noite que caía cedo e sem darmos conta. Ai como adorava os dias crescidos em que o sol se punha junto à hora da ceia e já não tínhamos pressa, com medo do escuro e das poças de lama que nos enegreciam os pés. Os tempos eram de miséria e os invernos muito rigorosos. Não, não havia nomes soantes para as inclemências do tempo.
Tenho ainda na memória as cheias de 1967, consideradas a maior catástrofe natural em Portugal continental desde o terramoto de 1755. Como se pode esquecer a célebre frase de Salazar “a partir de agora não morre mais ninguém”? A causa de tanta desgraça não foi a chuva, foi a miséria. Foram postas a nu as condições sociais em que muitas pessoas viviam.
Naquela época, o temporal e a miséria faziam dupla o inverno inteiro. Se havia alguns que viviam em casas com tribeira (os mais ricos), havia muitos mais sem eira nem beira. Quando o temporal surgia do nada, tapavam-se os olhos com as mãos, quando nem um saco de sarapilheira havia por perto, que pudesse servir para cobrir a nossa cabeça.
Os que tinham teto aqueciam-se à lareira da cozinha, perto da qual deixavam a roupa exterior a secar, já que a interior secava, por vezes, no corpo.
Enquanto hoje falamos da falha de eletricidade devido aos temporais, na década de cinquenta/sessenta a candeia de azeite ou a petróleo também se apagava. Ia-se para a cama “com as galinhas”, sentia-se a neve a entrar pelas telhas e acordava-se com o cantar do galo, tal como se pode ler nestes nossos versos:
“Quando eu nasci na casinha/ pintada de amarelo/ era quase noite e a lua espreitava
chamando pelas estrelas/ e o azeite na candeia escasseava.”
Todos sabemos que, embora a quadra natalícia apele a um sentimento de união e família, nem todos têm um lar para o qual possam regressar. Não o tiveram outrora, também muitos o não têm agora. As notícias meteorológicas prometeram sossego, acalmia e um Natal soalheiro, porém outras foram muito contraditórias. Como podemos ter sossego e paz quando lemos notícias de guerra e de destruição como estas?
“Cerca de 800 cristãos foram assassinados por terroristas de janeiro a abril, na Nigéria”; “No Afeganistão, 9 crianças são mortas ou mutiladas diariamente”;“Grécia: O campo de refugiados onde ‘crianças dizem querer morrer’”; “crianças vivem horrores a trabalhar nas minas para que tu possas conduzir um carro elétrico”; “Leilões de escravos às portas da Europa. Licitações, chicotadas e correntes.” EL PAÍS mostra casos reais, como os denunciados pela ONU: cada vez mais imigrantes estão sendo vendidos como escravos em mercados da Líbia”; ”Morreu a mulher indiana vítima de violação queimada a caminho do tribunal;” Em pleno século XXI, advogada iraniana, Nasrin Sotoudeh, é condenada a 33 anos de prisão e 148 chicotadas”; Considerado o maior e mais sangrento conflito desde a Segunda Guerra, o combate na República Democrática do Congo já dura 23 anos. Milícias e grupos rebeldes interessados no contrabando de minérios atacam vilarejos, estupram mulheres, matam inocentes e provocam ondas de refugiados.
Como podemos ter sossego e paz quando nos chegam notícias de crianças espalhadas por esse mundo fora a morrer de fome?
“Malnutrição provocou este ano 364 mortes de crianças angolanas em Huíla” Brasil: crianças que só têm alimentação na escola passam fome nas férias; “Crianças comem bolinho de barro para matar a fome no Haiti; “No Zimbabwe, há 2,5 milhões de pessoas à beira de “morrer de fome”.
Poderemos assobiar para o lado perante as notícias angustiantes provocadas pelas alterações climáticas e a passividade dos “donos” do mundo?
“ Rios secos, terra árida: o aquecimento global leva ao suicídio agricultores indianos”; Os novos deslocados fogem da seca ou da subida dos níveis do mar”; “Há anos que os especialistas avisam que as alterações climáticas vão estar na origem de fluxos mais complicados de gerir do que as vagas em fuga de guerras e perseguições; “Seca e fome em Angola, multiplicam-se apelos de ajuda”.
Como podemos dormir um sono tranquilo quando nos chegam notícias de crianças violadas, exploradas ou sem lar?
“ Só no Reino Unido passaram mais de 130 mil crianças nestes abrigos temporários no Natal.
há crianças com apenas 4 anos a trabalhar nas minas da República Democrática do Congo onde é extraído o cobalto para os nossos smartphones e carros elétricos, alerta uma investigação da Sky News, cuja equipa visitou uma série de explorações mineiras conguesas e se deparou com uma "legião de crianças" a trabalhar em todas elas.”; A cada hora quatro meninas com menos de 13 anos são estupradas no Brasil; Pequenos em perigo: aumenta o tráfico de crianças no mundo”.
Só mesmo “quando um homem quiser”, diz Ary dos Santos nos seguintes versos:
Tu que dormes à noite na calçada do relento/ numa cama de chuva com lençóis feitos de vento/tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento/ és meu irmão, amigo, és meu irmão// E tu que dormes só o pesadelo do ciúme/numa cama de raiva com lençóis feitos de lume/e sofres o Natal da solidão sem um queixume/ és meu irmão, amigo, és meu irmão.
Já para Isabel Varanda, da Universidade Católica de Braga, “A palavra salvação faz parte do léxico das religiões em geral e de um modo concreto do cristianismo. Portanto, a salvação do planeta, a salvação da humanidade e a salvação da criação é bandeira das religiões! E é bandeira concretamente do cristianismo que cabe a cada um erguer, partindo do princípio que a mais preciosa conquista do mundo é a paz.”
Assim, quando ouvimos que um soldado cristão passa por tiros do Estado Islâmico e salva criança, acreditamos que Deus abrira o caminho para a salvação do mundo.
15 Março 2024
08 Março 2024
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