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Escreve quem sabe

2018-09-23 às 06h00

Cristina Fontes Cristina Fontes

“Primeiro estranha-se, depois entranha-se!”
Fernando Pessoa

Costumo utilizar esta frase de Pessoa para referir o Acordo Ortográfico de 1990. Como professora de português, tenho a obrigação de o conhecer bem, pois os meus alunos escrevem segundo as regras da nova ortografia. Se concordo com tudo? Não. Se o diabolizo? Também não.
Hoje, abordarei a ortografia e as mudanças, reformas e acordos ao longo dos séculos. Oportunamente, falaremos das alterações mais significativas.
Ortografia é uma palavra composta por “orto”, que significa “reto, direito, correto” e por “grafia”, com sentido de “escrita”, significando, pois, “escrita correta”.

A ortografia pode ser: (i) fonética: reproduz tão fielmente quanto possível a forma como as palavras são pronunciadas e a pronúncia permite saber a forma gráfica (ex.: italiano,”uomo”); (ii) etimológica: preserva a forma com que em determinada altura se registou a palavra, mesmo que a pronúncia de hoje não lhe corresponda (ex.: francês, ”orthographie”); (iii) fonológica: representa abstratamente a escrita com base na realidade fonética da língua (ex.: português, “cereja” [cere(i)ja],”Ernesto” [Irnéstu], ”tio”[tiu]). Em geral, as ortografias são híbridas, não se enquadrando unicamente numa destas tipologias, embora se possa dizer que pertencem tendencialmente a uma delas.
Ocorreram várias mudanças ortográficas na língua portuguesa. Vejamos, como exemplo, as duas capas de Os Lusíadas, de Luís de Camões. A da esquerda é de uma edição de 1572 e a da direita de 1584. Mostram o nome do poeta grafado de maneiras diferentes: Luis de Camoes (na mais antiga) e Lvis de Camões (na mais recente). Em ambas, “Lusíadas” está escrito com “v”. Verificamos, pois, que as grafias em mudança não eram adotadas e cristalizadas num só momento.

Registavam-se usos híbridos em anos relativamente próximos.
Sem recuar muito no tempo, apresento algumas das mais significativas reformas. Em 1911, Gonçalves Viana implementou a Reforma Ortográfica, sustentada pelas Bases da Ortografia Portuguesa, o que suscitou os mais acérrimos despiques entre os seus defensores e os seus detratores.
Teixeira de Pascoaes, por exemplo, insurgiu-se contra a substituição do [y] pelo [i] e escreveu na revista A Águia um texto bastante contundente: “Na palavra lagryma, (…) a forma da y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.”

Também Fernando Pessoa se exasperou. Disse o poeta: “Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.” Reparem na grafia das palavras que hoje nos parece estranha. Os acentos ou falta deles, o [z] e o [y], a duplicação da letra [m], o [th] e o [ph] ou a separação do pronome pessoal.

Em 1931, houve a aprovação do primeiro Acordo Ortográfico entre Portugal e o Brasil, cuja implementação não foi levada a cabo da mesma forma nos dois países. Em 1943, redigiu-se o Formulário Ortográfico, no Brasil, após nova cimeira entre os dois países. Finalmente, em 1945, foi promulgado o Novo Acordo Ortográfico, resultante do encontro de 1943. Torna-se lei em Portugal, mas o Brasil não o adota (a grafia deste acordo é a defendida por quem não quer aplicar o novo). Entre 1971 e 1973 implementaram-se várias alterações, no Brasil e em Portugal, reduzindo bastantes divergências ortográficas entretanto detetadas.

Entre 1995 e 2002 o Acordo de 1990 é ratificado por vários países, mas não implementado. Após a independência de Timor, os oito países da CPLP aprovam o Segundo Protocolo Modificativo, determinando que a ratificação por parte de três países é suficiente para a implementação do Acordo Ortográfico. Em 2009, com a ratificação deste documento por Portugal e por outros países, dá-se início à implementação da reforma.
Respeito quem não segue o novo acordo e defende legitimamente as suas razões. Como leram, antes, também houve quem se mostrasse contra a aplicação das mudanças decretadas. Alguns dos seus argumentos traduzem dúvidas concretas, apontam problemas válidos e devem ser analisados.

No entanto, já não compactuo com objeções consubstanciadas no acinte e na falácia. Veja-se o tristemente célebre caso do juiz Rui Teixeira que se recusou receber um documento segundo a nova ortografia, o que lhe valeu uma pena disciplinar. Disse o magistrado que "nos tribunais, pelo menos neste, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar. (...) os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso." Teria sido bom que o juiz tivesse lido o texto do acordo ortográfico antes de assim escrever. Ficaria a saber que: (i) as consoantes que se leem, como é o caso do [c] da palavra “facto” se mantêm; (ii) as palavras esdrúxulas não perderam o acento, pelo que “cágado” se escreve da mesma forma antes e depois do Acordo.

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