Correio do Minho

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O homo ludens contemporâneo: vícios e terapias

Braga - Concelho mais Liberal de Portugal

Ideias

2018-12-05 às 06h00

José Hermínio Machado José Hermínio Machado

Na procura de continuidades ou de rupturas com a tradição ou os modos de vida que se configuraram nas comunidades rurais e de periferia urbana, embora esta questão também se aplique à vida urbana na sua plenitude, a questão dos jogos aparece como um caso de estudo e de observação, não só pela simples razão de ser uma das dimensões do humano em que se acumularam mais diferenciações e se evoluiu com mais velocidade para novas formas de prática desportiva, mas também porque surgiram práticas lúdicas em suportes e recursos inesperados, nomeadamente na informática. Sempre houve «viciados» nos jogos, desde as cartas, o fito, a bola, os polícias e ladrões, a macaca, neste sentido em que o vício implicava a permanência demorada no jogo e contribuía para a conflitualidade com os educadores. Ou seja, o tempo de jogar foi sempre um tempo que a sociedade contratualizou com os jogadores. Hoje estamos com a mesma perspectivação, mas num patamar superior de «adrenalina»: há jogos electrónicos viciantes e há tendências de ferocidade ou de violência que se começam a relacionar e a atribuir a certos jogos. A demonização do jogo deu sempre origem a narrativas de maior ou menor calibre, foi tema de canções, deu motivação literária q.b. Os jogos em suporte vídeo estão na linha de problemas que os estudos sobre o jogo sempre levantaram, mas agora de uma forma mais exacerbada. Li muito recentemente um artigo que gostava de partilhar com os leitores. O sociólogo Gérald Bronner escreve em Le Nouveau Magazine Littéraire, a revista guardiã de todo o esquerdismo mais radical, acerca dos jogos vídeos e da sua associação a «uma escola do crime» negando tal inferência, aliás, segundo ele, a negação é confirmada pela ciência (Psicologia? Sociologia? Antropolo. gia?) pois esta não encontrou ainda nenhuma relação de causalidade entre jogos vídeo e tendência para a agressividade a longo prazo. Nós sabemos como a ciência não ilude os medos nem os pressentimentos. Segundo ele a persistência do mito de que há qualquer ligação invisível e demoníaca reside na maneira como olhamos para a questão e a consideramos um risco, e ainda por cima um risco que incide sobre as crianças, «les créatures sacrées des sociétés occidentales». E aqui reside alguma novidade na análise: se nós, ocidentais, claro, temos um cuidado obssessivamente inquieto sobre os nossos filhos, ao tolerarmos que eles se fechem num mundo virtual e violento, pelo tempo que quiserem, estamos a abandoná-los a uma lavagem cerebral que os pode conduzir para uma tendência potencialmente mortífera. Diz o sociólogo que ao tolerarmos a exposição ao mundo virtual o fazemos para sossegarmos das suas escolhas de rejeição ao que é nosso. Portanto haveria aqui uma espécie de contrato surdo e tácito entre nós e eles: o tempo livre que nós ganhamos é pago pelo tempo da dessocialização deles em relação a nós e aos outros. Isto é validado pelo facto de pensarmos que os jogos conduzem ao individualismo, são mesmo a expressão do individualismo contemporâneo, conduzem à solidão do indivíduo. Pois se os filhos entregues à realidade virtual já são causadores de conflito e de divórcio entre os pais, o aumento da exposição aos jogos e ao poder representativo, evocativo, da realidade virtual vai acentuar ainda mais no futuro o nosso consentimento demoníaco para nos desviarmos da vida verdadeira. O sociólogo quis esbater um demónio e levantou outros. O contrato, a tolerância de tempo e de qualidade ou de nível dos jogos, afasta gerações, introduz problemas inquietantes na relação social. O sociólogo faz a análise mas não adianta processamento informativo para lidarmos com a análise e a contrariarmos ou desviarmos das suas consequências sugeridas. A construção de uma relação social feita na contratualização deveria assemelhar-se a formas de resolução que a tradição consegrou, um horário, um merecimento, uma desculpa, mas intensificar o conhecimento das realidades, a virtual e a real e atrazer para a discussão do real a função lúdica: ela é de fuga, mas deverá contribuir com mais energia para a assumpção do nosso presente. Pergunta que fica sempre no ar: mas agora o mundo virtual tem todos os encantos, não é? (Para o leitor investir na matéria, a conselho a leitura de Huizinga, Johan (2014). Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva. A primeira edição do livro foi em 1938. Na internet, ver, por exemplo, os post de Vince Vader: https://www.updateordie.com/2017/03/05/sobre-johan-huizinga-o-homo-ludens-e-a-ideia-de-circulo-magico/ ).

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