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O resgate da humanidade pela memória

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O resgate da humanidade pela memória

Ideias

2020-01-24 às 06h00

Isabel Estrada Carvalhais Isabel Estrada Carvalhais

Procuro neste espaço de opinião dar o meu contributo informado sobre as temáticas que mais diretamente se ligam ao meu trabalho parlamentar em Bruxelas e Estrasburgo, no âmbito em particular da Agricultura e do Desenvolvimento Rural. Nesta linha, e atendendo à intensidade dos trabalhos desta semana, seria fácil ter matéria sobre a qual explanar e de que vou dando conta aliás nas redes sociais num registo quase diário e numa ótica de prestação de resultados a todos os cidadãos. Contudo, é-me impossível ignorar que também nesta semana, se recorda um período recente da história mundial com um impacto ético de tal modo avassalador que o torna de reflexão obrigatória e que encontra o seu ponto alto no dia 27 de janeiro. Falo do Holocausto.
Será na próxima segunda-feira que se comemoram os 75 anos sobre a libertação do campo de concentração e extermínio nazi, Auschwitz-Birkenau, pelas tropas soviéticas, a 27 de janeiro de 1945.
Não, não é mais uma efeméride. Não é admissível que possa ser posta ao nível de outras efemérides, pela simples razão de que o que nela se recorda ser a tragédia da negação da Humanidade e em proporções tais que, dir-se-ia, teriam por si só a força moral de pôr em causa a reclamação da identidade humana pela nossa espécie. O título da obra de Primo Levi, “Se isto é um homem” (“Se questo è um uomo” na sua versão original, publicada pela primeira vez em 1947) invoca em certa medida este raciocínio. O “isto” não é acidental, pois o que Primo Levi nos revela através de uma narrativa na primeira pessoa, sem qualquer concessão (fosse ela à vitimização, à culpabilização, à denúncia, ao ódio, até mesmo ao perdão, a qualquer sentimento enfim posterior à sua vivência concreta, que pudesse deturpar a exatidão do seu relato), é precisamente a bestialização do indivíduo através de um quotidiano concebido para que ele mesmo seja o dínamo da sua bestialidade, normalizando-a como processo de sobrevivência. Processo que parece ser, como Primo Levi o descreve, mais rápido e fácil em uns do que em outros indivíduos, tal é a bruta sinceridade da natureza humana. Mas sobreviver para ser quem? Sobreviver sendo já o quê?
Há uma outra razão porque este não pode ser visto como apenas mais um aniversário, a caminho de mais um número redondo dentro de cinco anos. É que a cada ano que passa, são menos os sobreviventes que se juntam às celebrações. Por conseguinte, é cada vez maior a nossa responsabilidade em garantir que não sejam esquecidos, nem que os revisionismos históricos ataquem a sua memória. E é por isso que o dia 27 de janeiro é tão importante.
Falo do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, consagrado pelas Nações Unidas, mas também pelo Parlamento Europeu (Resoluc?a?o B6-0073 relativa a? memo?ria do Holocausto, Antissemitismo e Racismo) e em Portugal pela Resoluc?a?o 10/2010 da Assembleia da Repu?blica.
A consagração deste dia e a existência da Alianc?a Internacional para a Memo?ria do Holo-causto (IHRA) encontram toda a sua pertinência (que parecerá óbvia a muitos de nós) precisamente pelo facto de haver milhões de pessoas que negam essa memória e a obrigação do seu exercício. De facto, o Dia da Memória não é apenas uma ocasião para invocar um passado cada vez mais distante e que se deseja irrepetível; é antes o dia de confronto com uma inquietante verdade: a da atualidade de muitas ideias que foram âncoras da ação política nazi. Mesmo se a lógica dos campos de concentração esteja no que me parece ser um patamar de racionalidade autónomo, numa espécie de existência sistémica própria, para lá das ideologias, a verdade é que essa autopoiésis maligna não nasceu ou pelo menos não sobreviveu no tempo em que existiu, sem que um contexto maior, de ideias e de valores, possibilitasse o seu funcionamento. Valores e ideias que tantos cidadãos professam hoje, mesmo se num primeiro confronto digam que os “seus valores” nada têm a ver com os que possibilitaram o Holocausto. Mas está tudo lá: a so-branceria moral (que alimenta a vitimização presente na constante ideia da ameaça cultural, até civilizacional); a atitude miliciana contra a democracia e a política - quando não mesmo contra a cultura e a arte; a ideia de purga que conduz à sociedade-fênix, renascida das cinzas por um fogo purificador que a liberte dos novos “indesejáveis”, os marginais, os sem abrigo, os pobres, os refugiados, os imigrantes, as minorias incómodas, os corruptos, os indolentes, os terroristas, tudo posto na mesma praça, como se cada uma das etiquetas correspondesse a um estado moral e ético decidido plenamente pelo indivíduo, como se ser refugiado, por exemplo, fosse uma escolha moral, ao mesmo nível da opção por um ato de corrupção ou até de um ato terrorista.
Tudo junto, para a mesma ceifa indiferenciada, para não dar tempo de ver o trigo, os inocentes, para não dar tempo de ver Gente como nós. Se isto é humanidade...

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