Correio do Minho

Braga, terça-feira

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O velho viajante e a sua flauta

A responsabilidade de todos

Correio

2016-07-06 às 06h00

Escritor Escritor

Manuel Correia

No tempo em que tudo se reparava, havia um velho viajante que andava de terra em terra a reparar os guarda-chuvas e afiar facas, tesouras e todos os tipos de objectos cortantes. Montando um burro velho e cansado como o dono, o velho viajante andava nesta vida há muitos anos. As pessoas que o conheciam diziam-lhe para abandonar a vida que levava, mas o velho gostava de viajar e não havia ninguém que o convencesse do contrário.
 Ao som de uma flauta que o velho tocava, as pessoas apareciam e depressa rodeavam os dois: o velho e o burro. Daquela flauta saía a música mágica que entrava nos ouvidos de todos que a escutavam. A magia era tal que, quem estivesse triste passava a sorrir de tanta alegria. Havia pessoas que apenas se juntavam para ouvir o velho a tocar a sua flauta, feita de um pedaço de madeira que encontrou perdido num bosque há muito tempo.
As reparações não ocupavam mais que um dia em cada aldeia. As pessoas pobres pagavam com o que podiam: pão, batatas, cebolas, vinho e outros géneros alimentícios. O velho era tão generoso que aos mais necessitados, apenas cobrava um sorriso e nada mais.
Certo dia o velho viajante parou numa terra aonde nunca antes tinha passado, devido ao fraco acesso. Ficava no interior dum bosque, cheio de árvores muito velhas e grandes. Uma terra desconhecida do velho viajante. A princípio o burro não queria entrar na espessa floresta, talvez o seu instinto animal pressentisse algum perigo? Mas o velho insistia com o burro, e após uma longa disputa entre o burro e o velho, finalmente entraram na densa floresta. Durante uma hora caminharam sem avistarem uma única pessoa. Cruzaram-se com animais que corriam entre as árvores e arbustos, sem nunca pararem. O caminho era suficiente para que os dois passassem sem dificuldade, até que apareceu uma bifurcação. Indeciso o velho não sabia se havia de ir para o caminho da esquerda ou da direita? Por sua vez o burro achava que o melhor caminho era voltar para trás, mas o velho acabou por escolher o caminho da esquerda, afinal era o mais largo e em melhores condições de passagem, pensou o velho. Continuando a viagem por terreno desconhecido, os dois começavam a dar sinais de cansaço. Mas o caminho que a princípio era largo, passou a estreitar dificultando a passagem dos dois. Entre árvores, o velho e o burro caminhavam num silêncio arrasador, não havia pássaro nem outro tipo de animal que desse sinal de vida. Apenas ouviam os seus próprios passos que esmagavam as folhas caídas no chão.
Após uma longa caminhada pelo bosque, finalmente começaram aparecer as primeiras casas de uma pequena aldeia rodeada de árvores muitas delas grandes, grossas e velhas, muito velhas. O velho e o burro pararam no largo da pequena aldeia, aonde tinha uma fonte em que corria uma água fresca que lhes matou a sede. Sentou-se o velho num degrau da fonte e o burro deitou-se sobre as ervas que envolviam o chão. Por instantes, velho e burro descansaram, e acabaram por adormecer.
Quando acordaram, estavam rodeados de seres estranhos: pernas e mãos de urso, a cabeça de leão, o tronco metade leão metade urso, e com uma cauda que era uma cobra cascavel com a boca aberta. O velho ficou aterrorizado não sabendo o que podia fazer para se livrar destes seres de terrível aspecto, predadores esfomeados e prontos para os devorar! À medida que os animais se aproximavam do velho e abriam as bocas para o devorar, o velho sentia que estava a chegar o seu fim e o do seu burro que, tanto o acompanhou em todas as viagens ao longo de todos estes anos passados.
Entretanto o velho pensava que toda esta teimosia que o levou a entrar na floresta desconhecida, de querer conhecer o desconhecido, não passava de um grande erro, e que se pudesse voltar atrás, voltaria e seguia o conselho do seu burro que não queria entrar na floresta desconhecida. Mas agora era tarde de mais! As garras dos terríveis animais estavam prontas para o espetar e devorar num instante. O velho encolhido e encostado a um degrau da fonte pensava numa ideia para poder sair de tal alhada. De repente um dos animais aproximou-se e pegou no velho, e arrastou-o para uma das casas e fechou-o num quarto, juntamente com uma mulher e dois homens, todos com aspecto de velhos e cansados. O velho caiu no chão, que estava coberto de palha, e com cara de espanto olhou para os três novos companheiros e perguntou:
-          Os animais ainda não vos comeram?
-          São animais agora, porque já foram gente como todos nós! - respondeu um dos dois homens, com ar agastado.
-          Mas gente como todos nós, isto é, homens e mulheres? - Perguntou o velho.
-          Sim gente de carne e osso, seres humanos! - Respondeu a mulher e começou
a contar toda a história. - Tudo começou com a chegada de um velho pedinte, há dez anos atrás. Toda a gente da aldeia o recebeu como se fosse um  irmão. Todos o queriam ajudar, desde um abrigo para dormir, roupas e, naturalmente comida. Mas após um mês de convívio e de se tornar um dos nossos, a surpresa aconteceu: numa manhã de Inverno, chuvosa. Num dia em que ninguém saía de casa, a não ser por forte necessidade. O velho pedinte dormia no celeiro da aldeia e, quando o fui chamar para tomar o pequeno-almoço, tinha desaparecido, sem se despedir! Três dias depois apareceu uma jovem, bela e formosa, em cima de um cavalo branco de um brilho intenso. Trazia uma mensagem do velho pedinte, a agradecer tudo que fizeram por ele e como compensação ofereceu um saco de moedas em ouro para cada um! Mas os sacos só podiam ser aberto quando fosse noite, se alguém o abrisse antes do sol desaparecer o brilho do ouro transformá-los-ia numa criatura terrível. Apenas nós os três resistimos à tentação de abrir os sacos antes do sol desaparecer, os restantes foram abrindo e o brilho do ouro transformou-os nestas criaturas que nos têm feito de seus escravos. E tudo que é animal por estes arredores foi devorado por estas criaturas de mal.
O velho viajante estava perplexo pois já lhe tinham contado varias histórias fantásticas, mas esta era a mais incrível de todas! E qual seria o remédio para tal feitiço? Pensou o velho viajante enquanto tirava a sua amiga flauta. Desembrulhou-a cuidadosamente e levou-a aos lábios, soprou levemente e, o som daquela flauta começou a flutuar pelo ar do quarto, passou as paredes da casa, atravessou outra casa e mais outra, a magia do som percorreu toda a aldeia, o brilho do sol intensificou-se, os terríveis animais foram caindo com a passagem da doce melodia. Durante minutos o velho tocou a sua flauta, pensando que talvez seria a ultima vez que o faria! Por fim a música ecoou nas montanhas que cercavam a aldeia. A música continuava a ouvir-se mesmo depois do velho viajante deixar de a tocar! A porta do quarto abriu-se e, em vez de um terrível animal, apareceu um dos habitantes da aldeia . A música tinha quebrado o feitiço e todos os habitantes voltaram ao normal. Os animais da floresta que tinham sido devorados durante o feitiço, saíram dos corpos dos terríveis animais e voltaram para a floresta. O ouro transformou-se numa estátua, igual a um terrível animal. E para que ninguém se esquecesse do mal passado, a estátua foi colocada por cima da fonte, no centro da aldeia.

O velho viajante afiou as tesouras e outros objectos cortantes e, desapareceu na floresta a tocar a sua flauta, libertando a magia da sua música. E outras histórias um dia  o velho viajante terá para contar. 

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