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Renato Henriques: Litoral é um doente a quem estamos a dar paliativos
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Renato Henriques: Litoral é um doente a quem estamos a dar paliativos

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Renato Henriques: Litoral é um doente a quem estamos a dar paliativos

Entrevistas

2018-12-08 às 10h00

José Paulo Silva José Paulo Silva

O Homem tem perdido a capacidade de ser resiliente ao clima. A ideia é expressa pelo geológo Renato Henriques à rádio Antena Minho e ao Correio do Minho. Entrevista com um dos coordenadores da equipa que elaborou o Programa da Orla Costeira Caminha-Espinho, um documento que perspectiva a dinâmica da costa portuguesa até 2050. A conversa com o professor e investigador da Universidade do Minho abordou também a vulnerabilidade do Vale de Lamaçães em consequência do excessivo volume de construção numa planície de inundação.

Citação


P – As alterações climáticas estão na ordem do dia, com uma preocupação crescente da sociedade e dos governos perante fenómenos naturais cada vez mais extremos e frequentes. É preciso mudar procedimentos?
R – Este tema é muitas vezes mal abordado. É preciso distinguir conceitos. Alteração climática e a meteorologia são diferentes. É muito frequente na comunicação social um pequeno furacão, vagas de calor ou de frio, uma seca prolongada, uma inundação, que nós designamos como fenómenos meteorológicos extremos, serem confundidos com alterações climáticas. Pode haver, ou não, uma relação. A alteração climática é algo que é discernível na mudança do estado médio da atmosfera normalmente em períodos de 30 anos. Só se estatisticamente existirem eventos significativos é que poderemos falar de alterações climáticas. As alterações climáticas não são nada de novo na história da Terra. Existiram no passado, existem no presente e vão certamente continuar no futuro. Na realidade o ser humano perdeu capacidade de se adaptar a estes processos. Nós deveríamos estar mais a discutir a capacidade humana de se adaptar aos diferentes ritmos de mudança do clima, do que propriamente a discutir se o clima está hoje a mudar mais vigorosamente. O Homem acomodou-se ao espaço, por vezes erradamente, e perdeu capacidade de ser resiliente a estas mudanças do clima.

P – A forma como Homem tem lidado com o espaço que ocupa tem vindo a acentuar essa vulnerabilidade?
R – Um dos grandes problemas é o aumento da população humana e a necessidade de ocupar mais espaço, muitas vezes de forma errada. E quando o fazemos, aquilo que era um fenómeno natural, que no passado não trazia qualquer problema, passa a ser, na actualidade, um problema grave.

P – Há um mau planeamento dos grandes aglomerados urbanos?
R – No que respeita à costa marítima, as pessoas já sabem que ocupar erradamente o litoral traz problemas. A ocupação do espaço de forma desorganizada, sem ter em conta os factores dinâmicos da natureza, levou a problemas que se materializam hoje em dia. Na costa, os problemas não aparecem no período em que uma urbanização é construída, mas surgem anos mais tarde.

P – Na actualidade existe uma preocupação maior pelo ordenamento do território?
R - Hoje em dia, quando estamos a pensar o território, já incorporamos a valência do risco. Os nossos políticos também já se encontram mais sensibilizados. Temos uma Lei de Bases do Ordenamento do Território onde todos os problemas estão elencados e se o espírito da lei for levado a sério ou for vertido para o ordenamento municipal, nós reduzimos o risco ambiental. Os problemas de ordenamento que hoje temos são muitas vezes remanescentes de uma má pratica do passado e esses, por vezes, são muito difíceis de corrigir.

P – Essa é a realidade que o Programa de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) Caminha-Espinho pretende resolver?
R – A costa é um acervo importantíssimo do ponto de vista turístico que é necessário ordenar. Nós ocupámos a costa num período em que o mar estava mais retraído, as praias estavam mais largas, as cidades costeiras desenvolveram-se num período em que o nível das águas era mais baixo.

P – Está cientificamente provado que a subida do nível da água dos oceanos vai continuar?
R – A partir de 1991, a medição começou a ser feita por satélite e, de facto, a subida média das águas dos oceanos anda entre os 3,1 milímetros e os 3,3 milímetros por ano e não é igual em todo o planeta, é mais vigorosa em porções do Pacífico e no Índico. Em Portugal – dados cruzados dos marégrafos e do satélite – andou, no século XX, próximo de 1,7 milímetros por ano. Recentemente essa média subiu, aproximando-se dos 3 milímetros por ano. Se incluirmos o factor tempo e multiplicarmos por uma série de anos, esses milímetros passam a centímetros. Admitimos que o mar possa ter subido 17 centrímetros no século passado. Não parece muito, mas esses 17 centrímetros têm uma expressão cem vezes maior na migração horizontal do oceano. Isto foi suficiente para que a orla costeira portuguesa tenha recuado em média, ao longo do século XX, entre 170 a 200 metros.

P – Na zona Norte, a construção de barragens no Rio Douro teve influência no lançamento dos sedimentos arenosos para o mar, contribuindo para a erosão costeira?
R – Há dois factores que se conjugam para termos este problema costeiro. Um é a subida do nível médio das águas do mar e a ocorrência de tempestades, o outro é penúria sedimentar. Na realidade, estas duas situações estão relativamente relacionadas. O que sucede é que as barragens têm as albufeiras que criam uma menor dinâmica da corrente do rio e praticamente deixa de existir transporte sedimentar. Mas há um outro fenómeno muito interessante: a subida do nível do mar leva a que os rios vão perdendo ao longo do tempo capacidade de transportar sedimentos para o litoral. Subiu o nível das águas do mar 17 centímetros e subiu o nível das águas nos estuários também 17 centímetros, sendo que a dinâmica que tínhamos vinda do interior vai cessando aos poucos.

P - O que é que se pode fazer para alterar este processo?

R - Quando as sociedades eram mais nómadas, as populações deslocavam-se mais para o interior e o problema ficava resolvido. Com a sedentarização, foi-se criando ao longo da costa um tipo e uma volumetria de construção que não pode ser transportada. Numa circunstância em que o mar volta a ter um comportamento transgressivo - que já se repetiu no passado - em que o mar avança sobre o continente, nós não conseguimos mobilizar, ou seja, o grande problema que temos actualmente é termos perdido capacidade de ajustar os tecidos urbanos a esta nova realidade dinâmica natural.

P - Sendo certo que o nível das águas do mar vai continuar a subir...
R - Perspectiva-se que essa situação não vá cessar assim tão depressa.

P - Há muitas zonas que estão sob o olhar do POOC e para as quais existem procedimentos a adoptar para travar a erosão e a subida das águas que são paliativos?
R - A costa marítima está ‘doente’ e nós muitas vezes estamos a administrar paliativos. Passámos a lutar contra a natureza em vez de trabalhar com ela e quase sempre essa atitude deu asneira. Nós tentamos de todas as maneiras conter a subida do nível do mar através de obras de engenharia: fazer enrocamentos longitudinais, verdadeiras muralhas que contenham a subida das águas.

P - São eficazes?
R - São eficazes do ponto de vista erosivo. Quando criamos uma barreira endurecida à subida do nível das aguas, atenuamos a erosão mas ganhamos um outro problema que é o do galgamento das ondas, isto é, o mar começa a levar a areia que está na frente enrocada, aprofunda essa frente costeira e quanto mais profundo é o mar nessa zona com mais energia rebenta na costa. As ondas que antes se dissipavam na praia, passam a ter muita energia e galgam as estruturas de protecção e isso é um novo risco com que temos de lidar.

P - Estamos num dilema? O ideal seria as populações do litoral recuarem mais para o interior?
R - Recuar, às vezes, é uma recomendação, outras é a melhor solução e outras vezes até pode nem ser a melhor opção. O recuo tem duas vantagens muito evidentes: o dinheiro do erário publico deixa de ser gasto constantemente em obras de manutenção e depois desembocamos numa realidade: as zonas litorais são procuradas pelas praias, quando nós construímos as estruturas de protecção, a praia acaba por desaparecer e as comunidades que dependem desse acervo turístico ficam sem esse património.

P - Essa avaliação está contida no POOC Caminha-Espinho.
R - Estou a lembrar-me da situação nas Pedrinhas (Esposende) em que uma das recomendações que fizemos é a da mobilização para o interior. Entretanto, ao defendermos as Pedrinhas colocamos em risco a zona de Cedovém (Esposende). O mar aprofunda nas Pedrinhas quando construímos o enrocamento e a onda de ‘descalçamento’ irá, mais tarde ou mais cedo, afetar Cedovém. Nós, felizmente, estamos a recolher mais dados, mas o que já observámos permite-nos concluir que pode ser estratégico ganharmos terreno à Natureza para a pormos a funcionar como ela sempre se comportou: a dissipar energia da ondulação. Com a intervenção que se fez em São Bartolomeu do Mar removeu-se a vulnerabilidade daquele núcleo urbano. O geólogo americano Orrin Pilkie dizia que ‘durante anos os portugueses fizeram a grande conquista do litoral e um dia vão ter de fazer a grande retirada’.

P - São Bartolomeu do Mar pode ser um exemplo a seguir?
R - Eu penso que a nível da zona Norte é um exemplo de como a mobilização costeira, em alguns casos, pode ser positiva. Há aqui um pormenor importante, São Bartolomeu do Mar era um núcleo costeiro pequeno e fácil de mobilizar. Já não podemos dizer o mesmo em relação às frentes costeiras da Póvoa de Varzim, de Espinho, do Porto ou de Esposende onde, devido à sua dimensão, teremos sempre de analisar o custo/benefício, até porque em alguns casos a opção pela defesa costeira é mais interessante.

P - Relativamente às Pedrinhas, poderia seguir-se o mesmo processo de São Bartolomeu do Mar?
R - É uma operação que pode ser equacionada. Basta observar a fotografia aérea para ver que o núcleo urbano está de tal forma em cima da praia que é muito difícil uma defesa eficaz daquela zona, ou então teríamos de gastar muito dinheiro e seria complicado explicar as pessoas as soluções. Em alguns casos são segundas habitações

P - É uma inevitabilidade a demolição?
R - Demolir ou mobilizar as casas. Podemos reconstruir Pedrinhas mais no interior, mas isto, para já, não passa de um exercício de imaginação.

P – No caso de Pedrinhas/Cedovém, se as demolições não forem feitas no imediato, serão feitas daqui a 10 ou 20 anos?
R – Imagine-se que não fazíamos nada ou fazíamos um enrocamento. Provavelmente, durante 20 anos as Pedrinhas continuavam sem qualquer problema. Mas, também é provável que daqui a um ano ou menos venha um temporal que arrase a zona costeira das Pedrinhas. Estamos a falar de probabilidades, que é a maior angústia quando se elabora um plano deste tipo. Existe, obviamente, uma margem de risco.

P - Nos concelhos de Caminha e de Viana do Castelo as situações não serão tão dramáticas?
R - O núcleo das Pedrinhas será a situação mais complicada por causa da proximidade ao mar.

P - Neste processo sobrepõe-se a decisão política quanto às soluções a adoptar...
R - O POOC tem aspectos de execução mandatória, como é o caso da gestão das praias e zonas envolventes. O presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) dizia queo POOC é um plano de prevenção, protecção e recuperação do litoral.

P- Até ao próximo dia 14 de dezembro decorre a consulta publica do POOC. Como é que está a decorrer esta fase?
R - Com o POOC quisemos perceber o que tinha sido feito de errado no passado e de que forma o anterior plano tinha sido eficaz. Foi preciso perceber como está a costa marítima, perspectivar a sua evolução. Pensou-se de que forma íamos moderar a ocupação das praias. Fizemos reuniões de acerto com as autarquias e recolhemos contributos das câmaras municipais. Pode dizer-se que a equipa que elaborou o POOC negociou caso a caso com os municípios as matérias mais delicadas e chegámos a este período de discussão publica em que as pessoas podem deixar as suas sugestões, alertas e propostas que nós iremos analisar quanto ao seu cabimento.

P – Finda a discussão publica do POOC, qual é o passo seguinte?
R – A equipa técnica vai analisar os contributos, eventualmente vertê-los para o POOC e, no início de 2019, haverá condições para começar a implantar o plano. É muito importante sublinhar um aspecto: este POOC tem consigo a componente da monitorização. Pela primeira vez, é perspectivado um conjunto de investimentos destinados a angariar dados de observação da costa que não tínhamos antes. Eu e o meu colega Taveira Pinto percebemos imediatamente que tínhamos lacunas importantes em matéria de dados. Perspectivou-se uma tabela enorme de actividades de monitorização que vai produzir dados e fazer com que pela primeira vez em Portugal, um Plano desta natureza seja dinâmico para uma orla costeira dinâmica, isto é, o plano pode ser ajustado em função dos dados de monitorização que viermos a receber. A monitorização passou a ser uma caraterística fulcral. Este POOC perspectiva as mudanças na costa até 2050.

P – Numa palestra recente, na Escola Secundária de Maximinos, chamou a atenção para a profunda fragilidade do Vale de Lamaçães, em Braga. É uma situação com consequências graves?
R – Existe uma regra básica, quando se constrói numa planície de inundação como é o Vale de Lamaçães: nunca em caso algum se deve construir no subsolo. O que mais temos em Lamaçães são prédios com garagens subterrâneas. Os condomínios investem em bombas e quando vêm as chuvas mais intensas as pessoas têm de tirar de lá os carros. Temos também situações de subsidência, em que a drenagem da linha de água não é superficial, mas é no subsolo. O abatimento do piso em ruas de Lamaçães são fenómenos típicos de uma planície de inundação.

P – Vão-se repetir mais vezes essas situações?
R – Tendem a agravar-se, fundamentalmente se chuvadas muitos fortes se intensificarem no futuro. Recentemente, a Câmara Municipal de Braga fez uma intervenção de renaturalização das margens do Rio Este, o que é excelente, para aumentar a capacidade de escoamento; em contraponto, houve a impermeabilização dos terrenos devido à grande densidade e volumetria construtiva no Vale de Lamaçães.

P – Como é que podem mitigar estas situações?
R – Uma forma de contenção seria aumentar a capacidade de drenagem da superfície, o que será difícil de fazer, dada a volumetria de construção naquela zona de Braga. Já não existe grande margem para, através de obras de engenharia, se corrigirem estes problemas.

P - Em menor escala, continua a construir-se no Vale de Lamaçães...
R - Quanto mais aumentamos a construção, maior é a vulnerabilidade que estamos a acrescentar ao Vale de Lamaçães.

P – Ultimamente, tem-se sentido com mais intensidade a actividade sísmica na região do Minho. Existem motivos para preocupação?
R – Apesar de não trabalhar com a área da geofísica, nós temos uma carta de risco sísmico em Portugal em que as zonas de potencial mais elevado são Lisboa, Vale do Tejo, Costa Vicentina e Costa Algarvia. Aqui na região Norte podemos estar mais ou menos descansados, mas não estamos isentos de problemas. Temos pequenas falhas, mas que têm alguma mobilidade. Temos a falha de Lomar, temos uma em Espanha, outras vezes é Ponte de Lima. São sismos que provocam uns ‘tremeliques’, e não se perspectiva, nos próximos milhares de anos, que a situação se modifique.

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