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25 de Abril de 1984

Entre a vergonha e o medo

25 de Abril de 1984

Ideias

2021-04-27 às 06h00

João Marques João Marques

Se o 25 de Abril nos trouxe a liberdade democrática de dizer, de participar e de votar como entendemos, há uma liberdade humana que começa a ficar em risco: a liberdade de ser.
À medida que avançamos na digitalização da economia, dos serviços e da administração do Estado, começamos igualmente a digitalizar, a velocidades alucinantes, a nossa própria existência. Hoje, para além de pessoas de “corpo e alma”, somos um conjunto de bits e bytes englobados em servidores que tratam de não permitir que se esqueça qualquer ato relevante ou irrelevante, público ou privado, que cometamos ao longo da vida.
Ao acordarmos numa qualquer “Smart City”, desligamos o alarme do telemóvel e, de seguida, abrimos a torneira da água quente, devidamente controlada pelo contador inteligente da água, da luz e do gás. Já à mesa, vociferamos uma ordem para uma coluna que nunca pára de nos ouvir e somos direcionados para a aplicação das notícias. Espreitamos o que se passa no país e no mundo, muitas vezes sem tomar consciência de que a notícia somos nós. Os dados que já fornecemos, ao abrir essa aplicação, informam inúmeras empresas sobre, entre outras coisas, a utilização daquele meio de acesso à informação, quem somos e qual o serviço noticioso de que mais gostamos.
O nosso perfil é, assim, construído desde a aurora e prolonga-se pelas 24 horas de cada dia: quando usamos outra aplicação para validar a viagem no transporte público; quando encostamos o cartão ao terminal para pagar o almoço; e quando o nosso registo biométrico valida a entrada e saída no emprego. Já para não falar daqueles que são rastreados a par e passo, por conta dos sistemas de geolocalização instalados em veículos e dispositivos da entidade patronal.
Antes do repouso dos lençóis, consultamos o vasto conjunto de redes sociais que instalámos no nosso “telefone inteligente”, sem sequer nos darmos conta de que, mesmo não reagindo a quaisquer conteúdos, já nos traçaram a personalidade por conta do interesse ou desinteresse com que passamos mais ou menos tempo a olhar para o rol interminável de “posts” que nos são apresentados.
O que toda esta informação já disse sobre nós é muito mais vasto do que aquilo que gostaríamos que muitos dos nossos amigos ou familiares soubessem, sendo certo que, ao contrário destes, essas entidades (e os automatismos de que dispõem) têm a capacidade interminável e inesgotável de manter, aceder e compreender esses dados.
De quem gostamos, de quem não gostamos; que ideias defendemos, que ideias desprezamos; o que temos e o que não temos; a probabilidade de concluir um curso ou de termos sucesso na vida; onde estudam os nossos filhos, onde trabalhamos; que rotinas levamos; quando estamos em casa ou fora dela. Tudo, perma- nente, insistente e ubiquamente recolhido, conservado, analisado e, muitas vezes, oferecido ou vendido a entidades terceiras.
Chamou-se a isto a era do “capitalismo de vigilância”, mas, quanto a mim, o “capitalismo” é mero acessório retórico destinado a tornar a ameaça ideologicamente pura. Sucede que a ameaça não é pura e atravessa todo o espectro ideológico que possamos convocar.
Tanto é funcional e arriscado o controlo oligopolístico de um conjunto reduzido de empresas sobre os nossos dados pessoais, como é temível o potencial iliberal de Estados totalitários (e avessos ao capital) controlarem a sua população.
Sabemos que já existem sistemas de créditos que definem o que um cidadão é ou merece ser aos olhos do Estado e como deve ser considerado ou desconsiderado pelos seus pares. Competentes algoritmos conjugam a informação e traduzem o conjunto de comportamentos observados (bons e maus) em perfis que atribuem a dignidade que a cada pessoa é devida, com reflexo direto no seu acesso a bens e serviços.
Existem, até, instrumentos deste tipo de auxílio à decisão sobre a potencial reincidência criminal de reclusos, constituindo um fator determinante na hora de deliberar sobre a concessão de liberdade condicional.
Como bem sabemos existirem mecanismos de inteligência artificial que decidem pelas empresas que pessoas merecem uma oportunidade de emprego, ou, na banca, que clientes são confiáveis para a atribuição de créditos.
Meios automatizados que se antecipam e substituem a decisão humana, estando, na maioria dos casos, para lá da compreensão de quem por eles é afetado e aos quais é erradamente atribuída uma capacidade de acerto incontestável.
Ora, a liberdade de ser implica não estarmos sujeitos a determinismos inultrapassáveis e a círculos viciosos que mais não fazem do que perpetuar estereótipos e barreiras sobre o que somos e o que podemos ser.
Sem isso, de nada nos vale Abril, porquanto a liberdade passa apenas a aparência.
Não, este não é um manifesto antitecnologia, nem um apelo ao eremitismo, mas um mero alerta para que o futuro do ser não deixe de estar na lista das liberdades prioritárias por que vale a pena lutar. 1974 não pode ser substituído por 1984.

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