Um batizado especial
Ideias
2022-12-11 às 06h00
Na próxima segunda feira, dia 12 de dezembro, celebrar-se-ão 46 anos de poder local democrático, instituído pela atual Constituição. Com efeito, em 12 de dezembro de 1976, pela primeira vez em dois séculos, todos os órgãos do poder local acabaram por ser eleitos pelos cidadãos, em sufrágio direto e universal. Foram as primeiras eleições autárquicas do “pós-25 de abril”. Durante o Estado Novo, as câmaras municipais e as freguesias dependiam integralmente do governo. O executivo e os governos civis indicavam e nomeavam quem exerceria as funções de presidente e de vice-presidente da câmara. O presidente, por seu turno, nomeava um regedor que detinha funções policiais locais. Os presidentes das juntas de freguesia eram nomeados por um (aos nossos olhos, estranho e anacrónico) conselho local de “chefes de família”. E tudo isso, na paz aquiescente do povo que vivia alheado dessas coisas da política e a bem da nação!
O financiamento desse poder local não democrático (uma “longa mão” do Estado central salazarista) era inevitavelmente feito pela via de dotações orçamentais e de doações/angariações de fundos para a realização de obras públicas. E isso, de acordo com a velha lógica de que quem passa o cheque é que manda, ainda que se fingisse o contrário. E é ainda com reminiscências desse ambiente de nevoeiro cívico, de estado autoritário que perduram, ainda hoje em dia, alguns tiques e reações populares que, tal como um “reflexo condicionado”, vão sendo negações de cidadania. Temos alguns concidadãos que têm receio instintivo de o serem - desde logo, de exercerem e exprimirem a respetiva cidadania. Há pouco tempo, num conhecido restaurante do Minho litoral, perguntei ao respetivo dono que simpaticamente recebia os seus Clientes, a que era que se referiam uns certos cartazes espalhados pela cidade, com dizeres reivindicativos locais, dirigidos à câmara municipal. E a resposta que me serviu foi, para mim, paradigmática e elucidativa de um estado de espírito salazarento, já fora de tempo: “Sabe, eu não me meto, nem percebo nada de política”!
O poder local é a “escola primária da democracia”, dizia Alex de Tocqueville. A própria integração europeia, numa lógica de subsidiariedade do exercício do poder, disseminado entre os níveis local, regional, nacional e supranacional, pressupõe e sustenta-se no poder local, entendido como sendo o primeiro nível da Europa integrada. Daí a consagração do princípio da subsidiariedade enquanto princípio fundamental da integração, como instrumento de atribuição e de repartição de competências. A subsidiariedade arbitra (pelo menos, em teoria e a priori) se, no plano legislativo, será o nível supranacional (subsidiariamente) ou o nível nacional que se constituirão, caso a caso, com o direito/dever e a legitimidade para intervirem. Democracia pressupõe responsabilização dos próprios decisores e de quem os escolhe. Autodeterminação, liberdade (individual e coletiva) requerem proximidade. Proximidade de quem decide, com quem é afetado pela decisão. O poder local, nesse sentido, é o contraponto do centralismo decisório e não democrático. Os autarcas são os primeiros construtores da democracia e a vitalidade do poder local é o primeiro sinal de saúde democrática….
No entanto, importa dizer que, 46 anos depois, ainda temos, de certo modo, medo do poder local. Ainda não conseguimos cumprir inteiramente a democracia porque, desde logo, ainda não completamos o plano da Constituição: falta-nos um terço! Ainda não conseguimos edificar e aproveitar o plano constitucional autárquico que prevê para “o continente” – desde há 46 anos, repita-se! – a existência de três tipos de autarquias: freguesias, municípios e regiões administrativas. Não temos regiões administrativas. Não temos descentralização com legitimidade política-democrática. Não temos regionalização. Em suma, não conseguimos cumprir a Constituição e, pelos vistos, vamos vivendo tranquilamente com isso. Reclamamos recorrentemente pelas reformas do Estado, dos partidos; por vezes, pelo reforço da democracia local. Porém, não conseguimos cumprir a Constituição, no que respeita ao seu plano autárquico! Temos uma espécie de democracia local que, tal como as autarquias do Estado Novo, ainda não se emancipou do Estado central. E nós, população, cidadãos, bem vistas as coisas - quer queiramos, quer não – ainda não assumimos inteiramente a responsabilidade pelo nosso destino democrático. Ainda temos medo de ser donos de nós próprios! Tal como o proprietário do restaurante que, há pouco tempo, simpaticamente me recebeu, realmente, parece, às vezes, que “não nos metemos, nem percebemos nada, de democracia” … Mas temos a ilusão que sim.
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