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Braga, terça-feira

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A caixa de bombons

A necessidade de dizer chega

A caixa de bombons

Voz aos Escritores

2023-05-12 às 06h00

Fabíola Lopes Fabíola Lopes

- Guardas a caixa por baixo do louceiro?
Dito assim até parece que o louceiro estaria suspenso no ar. Não era o caso. O louceiro era composto por duas partes, uma em baixo com duas portas de madeira fechadas por uma pequenina chave metálica e uma parte de cima que encaixava nesta primeira parte. Dentro desta parte cimeira, toda a sorte de pratos e chávenas, canecos, pires, copos e loicinhas se ajeitavam numa ordem previamente estabelecida pelo uso mais frequente de baixo para cima, protegidas por duas portas altas de vidro. Quase chegava ao tecto.
Duas vezes por ano piruetavam cá para fora numa dança de purgação de impurezas e pós com água e sabão numa bacia, apenas água noutra e um pano nas minhas mãos.
A minha madrinha em cima de uma cadeira lá se encarregava de voltar a colocar todos estes vidros e vidrinhos, porcelanas afins, no devido sítio sem grandes alterações. Páscoa e final de Setembro eram os tempos eleitos para este ritual de cuidados.
A dita caixa de lata tinha como destino a parte de baixo do estimado louceiro. Depois de lá colocada em repouso até termos visitas, umas mais cerimoniosas e dignas do tal especial repasto do que outras, a pequena chave era rodada a certificar que ficava fechado. Mas a chave ficava lá, no buraco, à mão de semear de gulodices mais espevitadas.
Inicialmente era uma caixa de bombons de chocolate da marca Quality Street. Redonda, com dois andares e uma rodela de papel explicativa de sabores, recheios e fusões. Uma fita de plástico autocolante impedia mãos pequenas de subtraírem algum exemplar.
- Guarda e deixa estar aí, para termos algo bom para pôr na mesa quando vierem pessoas cá a casa.
O olhar guloso deve ter denunciado alguma intenção para esta explicação mais detalhada. E a espera começava. Ter alguém lá em casa para um chá ou um café implicava abrir a caixa e colocá-la na mesa à disposição. Mas as visitas nem sempre se coadunaram com o relógio do apetite por doçuras tão raras e variadas. E que remédio tinha se não esperar.
Quando finalmente lá apareciam as visitas dignas de tal iguarias, até os olhos se agigantavam de impaciências.
O comportamento à mesa tinha de ser exemplar, não podia ir com sofreguidão, e sabia que apenas podia tirar um ou dois, depois de estudar muito bem o folhe- tim explicativo de conteúdos para não arriscar um recheio de laranja ou de morango.
Depois das visitas se irem embora seguiam-se dias de verdadeiro repasto chocolateiro. Cada dia arranjava maneira de, cuidadosamente, a porta chiava ligeiramente ao abrir, retirar da caixa dois bombons, até restarem apenas os que não afinavam com o meu palato. Os de caramelo eram os primeiros a derreter.
- Ai, já só há estes?
Fazia-me de desentendida. O olhar suspeito da minha avó Quina não deixava dúvidas perante o meu corar e baixar de olhos associado a alguma tarefa inesperada e urgente de entreter mãos e silêncios comprometedores.
Nunca houve um confronto mais directo e intimamente sempre lhe agradeci por isso. Ela sabia e eu sabia.
Com o passar dos anos a situação repetia-se, ora com esta caixa de bombons ora com uma caixa semelhante mas azul e de bolachas de manteiga. Também eram deliciosas e tinham dois andares de aguadilhar qualquer boca gulosa, como era o caso da minha.
Desde há uns anos, nem sei precisar quantos, no Natal e na Páscoa, há sempre uma caixa destes bombons adquirida lá para casa. Dura bastante mais tempo a cada ano que passa, que a idade não perdoa. Mas não importa nada.
Ela sabe e eu sei.

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