Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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A Caminhada

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2016-08-25 às 06h00

Escritor Escritor

Isa Pontes

Olha… um concurso literário! Interessante…
Élio Blanco foi bebericando o café lentamente, ao sabor da leitura do regulamento que vinha publicado no jornal diário que se encontrava sobre a mesa do Café Joaninha. Um local simples, sossegado e de proprietário simpático. O jornal publicitava com destaque um concurso literário a realizar brevemente, promovido pela Biblioteca Pública do Concelho. Já tinha ouvido comentar que a Biblioteca era gerida por eficiente director e coadjuvado por funcionários de espírito criativo, engenhoso e empenhados em mostrar trabalho; gente de corpo inteiro, como se dizia antigamente.

E Elias pensava… Quem sabe… Talvez o prémio seja chorudo … até me dava jeito…
E foi-se empolgando, num arrebatamento interior incontrolável. Bolas, até parece que tudo está vindo ao encontro das minhas esperanças!
Havia chegado à aldeia que ficava a uns 12 kms. dali, do centro da cidade, há uns 5 meses. Tinha chegado com o espírito em alvoroço, cheio de anseios, sonhos e alguns projectos. Vinha do Alentejo.
Na verdade, partira de Sete, uma quase desconhecida aldeia do Alentejo, num pequeno Fiat, durante uma tarde quente e seca, de garganta a pedir qualquer coisa fresca. Só aguentou aquela secura por já se encontrar habituado aos calores brutais de África. Mas tinha de ficar ali por uns dias até vir para o Norte, para o Minho. Tinha uma missão a cumprir onde a sua palavra estava empenhada e era em Sete que teria de buscar informações que o iriam conduzir ao Norte do país.
Ao chegar à aldeia, ou melhor dizendo, ao final do seu destino, extasiou-se com os muros repletos de glicínias. Pareciam mantos, véus, de plumas lilases a esvoaçarem ao vento brando. Um espanto para a alma!

Procurou a Sô Dete ( Sra Odete, disseram-lhe depois ) a mulher mais velha do lugar. Tinha inúmeras perguntas para lhe fazer.
- Anda à minha procura?
- Ando, minha Senhora. Venho de muito longe, para a encontrar, precisava que me ajudasse aqui numas coisas.
- Ora diga lá. E a simpática velhinha, encostada a um pau, sentou-se numa pedra e ficou-se a olhar para ele e, quem sabe… a pensar de onde vinha aquele homem de pele tostada do sol a querer falar consigo!...
- Acontece que procuro uma casita que um antepassado meu me disse existir aqui e que era de seus pais. Meu avô morreu já faz 20 anos lá em Angola, numa fazenda de algodão, a Kibangue Agrícola. A fazenda ficava numa região maior que Portugal, chamada Baixa de Kassange. Todos os hectares eram cultivo de algodão e girassol. Os meus pais, depois de casarem, foram viver com o meu avô, o pai de meu pai, lá na fazenda. Eu nasci em Luanda e por ali fiquei, em casa de familiares a estudar, mas as férias eram sempre passadas na Kibangue Agrícola. Aquele lugar era o meu paraíso de criança! Para além de ter todo o espaço só para mim, eu passava tardes inteiras a escutar as estórias que meu avô me contava. Para mim não havia coisa melhor.
Era por essas tardes que ele me falava dos seus antepassados minhotos, da vida sacrificada dos lavradores, das lágrimas das mulheres a verem os filhos e maridos partirem para a guerra, uma guerra que nem era de cá, nem sabiam para onde os levavam… contava-me da fome e do frio; das velhinhas que fiavam linho noite e dia para depois o tecerem e fazerem agasalhos; das outras que cardavam lã para fazerem coturnos; dos homens que passavam dias no lagar do azeite, fazendo girar a roda e colhendo as borras para alumiar as candeias; das raparigas lindas -ele dizia que as minhotas são as mulheres mais lindas de Portugal sabe? - que aproveitavam as lagoas feitas com a água da chuva ou com algum veio de nascente, para lavarem alguns trapos, batendo-os nas pedras que havia por ali. Por tudo isto e muito mais, eu prometi-lhe que haveria de achar o lugar onde ele tinha nascido, quando foi para Angola, naquela leva de gente que fugia à fome. É por isso que estou aqui, Sô Dete.
- Olhe lá e o seu avô como se chamava?

- Augusto Blanco.
- Já sei… devia ser o filho do Zé Canário, um que se casou com uma rapariga que fugiu de Espanha. Eu vou mostrar-lhe onde eles viveram, mas olhe cagora, carago, só lá há lixo e silvas!
- E os seus pais gostaram daquilo, lá por África? Tanto calor Jesus, credo!...
- Os meus pais e meu avô foram retalhados à catanada na fazenda, lá na Baixa de Kassange. Foi ali que começou o terrorismo em Angola. Daquele lugar resta-me a saudade e a dor e… uns papeis que o meu saudoso avô me deu, numa altura em que os fui visitar, pois já estava a trabalhar na “Província de Angola”, um jornal criado em Luanda uns 15 anos antes de eu nascer. O meu avô pediu-me que guardasse aquelas relíquias e que procurasse aqui a casinha dos pais dele; ele disse-me que foi nessa casa que a mãe Maria Blanca lhe ensinou as primeiras letras.
- Cum carago, o seu avô sabia ler?
- Sabia, um pouco.
- Prontus! Aí está a casa dos seus passados.
Elias olhou o lugar onde se erguia uma parede em derrocada sobre a estrada de pedra solta; por trás aparecia uma pereira raquítica onde deveria ter existido, em tempos idos, peras rocha; a toda a volta galhos, madeira e pedras sem destino. Mais acima aparecia um resto de parede segura por dois valentes troncos de castanho e sob estes ainda se viam dois buracos escuros, currais antigos, abrigos de gado.
- Olhe lá! Ta a ver esta pereira? Neste lugar foram criados 9 filhos do casal que aqui morou; era uma gente muito pobre e os donos da casa, que eram parentes dos seus bisavós, deixaram-nos vir para aqui morar. Coitadinhos… Por baixo do chão, ali, na cave, ficava o porco e era para lá que eles todos faziam o que faziam… Por cima a telha era vã, por onde entrava o frio e a chuva. Sofriam muito… Era por ser assim que muitos iam para África…
- Sô Dete muito obrigado, muito obrigado. Eu vou ficar por aqui um pouco.
Elias deambulou por ali, preso de emoções várias, lágrima no canto do olho, braços tensos, cabeça meia zonza. Havia bocados seus naquele espaço … Era urgente ficar por ali, fazer alguma coisa que perpetuasse o nome de seus antepassados; a aldeia era linda; montes e vales um consolo para a alma; bem perto viam-se as montanhas do Gerês; o povo era simpático… Estava a apaixonar-se pelo lugar.
“ E se eu conseguisse trazer para a aldeia um espaço onde houvessem livros!... Antigamente, dizem, andavam carros pelas aldeias a alugar livros que as gentes corriam a trazer para casa… Agora poderia fazer melhor: iria escrever a várias entidades a pedir que oferecessem livros para o meu projecto se tornar vivo; começaria por solicitar livros para crianças e depois subiria de escalão até chegar à História do nosso país, contada de forma simples e interessante. Talvez até pudesse fazer umas pequenas palestras sobre a história do nosso povo, das suas lutas, sonhos e conquistas. O exemplo dos nossos antepassados a servir de seiva às gentes de agora. Era urgente, era urgente e, quem sabe… este concurso literário não será um alerta, um embrião escondido, camuflado…

Pois… Há que dar o primeiro passo, em nome dos meus heróis que já cá não estão. E depois tenho os papeis que o avô me deu… Papeis? Tesouros isso sim! Cartas escritas para o Reino, entre 1700 e 1800, lá de Angola. Algumas assinadas pelo grande governador Sousa Coutinho. Nelas tenho aprendido tanto, para não dizer tudo! Agora, neste local eu sei, eu descobri que um homem pode começar grandes projectos, traçar grandes caminhadas e chegar com êxito ao fim. Para já é apenas um sonho mas… Como é que diz o poeta? “ O sonho comanda a vida e sempre que o homem sonha o mundo pula e avança”.

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