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Braga, terça-feira

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A Choca

A responsabilidade de todos

A Choca

Voz aos Escritores

2021-05-21 às 06h00

José Moreira da Silva José Moreira da Silva

Em baixo, ladeada de verdes laranjeiras, a capoeira latejava de cânticos e grasnidos. O dia acordara de feição e o galo, de crista fresca e bem altiva, cucuricava em altas sonoridades, dizendo, à Cristiano Ronaldo, eu estou aqui. Que ele estava ali sabia-o bem a Choca, galinha pedrês nascida fora de contexto, pois todas as irmãs coravam de castanho ou cor de café com leite. E sabia-o porque, na encruzilhada do relacionamento galináceo, recebia do Cantor um olhar sonoro fulminante, seguido de duas investidas guerreiras e três bicadas a condizer. Não que o Cantor não fosse galo bem amoroso e atento às idiossincrasias femininas. Pelo contrário, traçava com solicitude comovente as couves que lhes eram arremessadas e, com meia dúzias de cocós, chamava o seu obediente harém. Galinha que não debicasse a couve estraçalhada, corria sério risco de repentina expulsão.
A Choca atravessava uma daquelas fases em que só lhe apetecia dormir. Acabado o ritual de sua longa postura, prostrava-se sobre os ovos das irmãs em comovente afã, sonhando a descendência de olhos muito piscos, cacarejando aqui, gemendo acolá, sempre que a dona a levantava com todo o carinho para lhe retirar os ovos. Ficava sempre triste como a noite, gemia cada vez mais ansiosa, pois pressentia que o tempo estava a passar sem que vislumbrasse a tão desejada descendência.
A vida decorria normalmente na capoeira. Fora dela, em casa da dona, o tempo cumpria a sua função. A dona, moçoila bem arejada, mas muito circunscrita à sua condição de solteira endurecida, carpia lamúrias, pois não vislumbrava de que forma transformaria a sua vida. O seu pai, escrupuloso nas demandas e rigoroso nas ordens, traçara há muito a fronteira da liberdade. A missão dos filhos, dizia ele, era a da complementação: ração comida, ração trabalhada, e era no campo, no curral e na capoeira que se explicitavam os provérbios.
Numa quarta-feira cinzenta, daquelas que indiciam borrasca, a Choca levantou-se com ar desperto. Decidida, perdeu-se no meio das irmãs que, laboriosas, esgravatavam a terra em busca de alimento. Todas bateram as asas, de contentes. Em má hora, porém, tomou tal decisão. Cantor, visivelmente indisposto, arremessou-se-lhe em altos gargarejos, enxotando-a de novo para o ninho. Percebia-se a intenção: aqui quem manda sou eu, tens de completar a tua missão.
A Choca pedrês cada vez mais entristecia. Não percebia por que razão Cantor a desprezava, a humilhava perante as suas irmãs. Perguntava-se, muitas vezes, se a cor das penas teria a ver com isso, e desejou ser diferente, mais morena, como a maioria das suas irmãs. Mas isso era, naturalmente, impossível. Cansada da prisão e dos pensamentos, uma ideia começou a formar-se em todo o seu ser. Não, não continuaria naquela situação, tinha de encontrar uma forma de fugir da capoeira.
A tarde escurecia rapidamente, as nuvens e o vento avisavam os incautos. Prevendo chuvas abundantes, a pedrês decidiu definitivamente: voaria ao primeiro tombar das águas e ao sabor do vento. Furtiva, pulou para a saliência mais alta. Se voasse, se o vento fosse um bom amigo, talvez conseguisse. Aguardou, encolhida, mas resoluta, pelo primeiro arfar. Ao senti-lo e às primeiras gotas, encheu o papo de ar, de coragem nunca dantes sentida, genufletiu e voou. Durante uns breves momentos, sentiu-se nas nuvens, respirando diferente o que lhe pareceu a liberdade. Pousou, abrupta, na relva verde, em baixo, mesmo sob o diospireiro já seu conhecido. Nesse exato momento, uma tromba inusitada de água esmagou-lhe as asas. Não se atemorizou. Abrigou-se junto ao tronco e olhou majestosamente a capoeira. O que pensariam, Cantor e as suas irmãs, do seu gesto destemido? Criticá-la-iam, certamente, por expor-se assim à fúria do tempo. Bicou, feliz, um torrão molhado. Aquela terra sabia à felicidade desejada.
Na varanda, a sua dona seguira, atentamente, a grandiosa aventura. Admirava a ousadia da galinha e apercebia-se do seu olhar impante. Apreciava-lhe as asas molhadas, batia palmas à sua coragem. Porque não voo eu também, perguntou-se, cabisbaixa. Porque não luto pela minha liberdade, pela minha felicidade?
Em baixo, a Choca bateu várias vezes as asas, como se falasse. A dona percebeu o gesto e interiorizou a surpreendente lição: na gramática das coisas, o sujeito comanda sempre as suas ações.

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