Correio do Minho

Braga, terça-feira

- +

A cidadania não pode ser opcional

1.758.035 votos de confiança

Banner publicidade
A cidadania não pode ser opcional

Ideias

2020-09-27 às 06h00

Artur Coimbra Artur Coimbra

Com vinte anos passados já em pleno século XXI, pensávamos que as questões da cidadania, fundamentais numa perspectiva humanista do mundo contemporâneo, estariam completamente consolidadas e consensualizadas. Seria normal.
Pelos vistos, não. Há pais, aqui bem perto de nós, neste distrito, mais movidos pela tentação da visibilidade mediática ou por uma agenda fundamentalista, que alegam objecção de consciência para que os seus filhos não frequentem as aulas da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, pelo que foram sancionados pela acumulação de faltas, apesar de serem excelentes alunos. Os pais destes alunos que faltaram a todas as aulas da cadeira, argumentam candidamente que os tópicos abordados são da responsabilidade educativa das famílias, como se não soubéssemos todos a utopia de tal alegação. Até parece que qualquer pai domina a infinidade de temas e conteúdos que a disciplina incorpora, como veremos mais à frente.
Depois, como sempre acontece num assunto desta natureza, apareceram manifestos a favor e contra a obrigatoriedade da disciplina, extremados ideologicamente. De um lado, cerca de uma centena de personalidades da direita, entre os quais o ex-presidente da República Cavaco Silva, o ex-primeiro ministro Passos Coelho (sob cujo governo a disciplina já existia) e o cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, pronunciaram-se contra aulas obrigatórias de Cidadania, apelando para que os pais possam escolher.
Para serem consequentes, estas honoráveis dignidades deveriam também questionar os conteúdos de cadeiras como a Matemática, a História, o Português, a Filosofia, a Física e Química e as Ciências Naturais. Quem sabe se não encontrariam razões para se oporem à sua obrigatoriedade e concluírem que os pais conseguiriam em casa perfeitamente encher a cabeça dos seus rebentos com os conteúdos que a escola não deve dar. Porque o que aqui se verifica é um ataque despudorado à escola pública, à educação pública. Em última análise, o que aqui se verte é a subversão das regras, o incumprimento do que está estabelecido para os níveis de ensino. Se aquelas sumidades entendem desse modo, devem ir mais longe e defender a privatização do ensino e, em derradeira instância, a ausência de escola, pois aí seria a libertação total. Não haveria regras e os paizinhos ministrariam aos seus filhos o que bem lhes apetecesse. Voltaríamos à anarquia, sistema (ou falta dele) que a alguns apeteceria.
Os mencionados progenitores que contestam a obrigatoriedade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento na escola pública, só têm um remédio, que já deveriam ter tomado: colocar os seus educandos no celestial ensino privado. Lá certamente não contestarão as regras estabelecidas. Os seus filhos andarão de uniforme e terão uma disciplina que é própria daqueles estabelecimentos de ensino, para os quais só vai quem quer. Tem regras, tal como a escola pública.
Voltando aos manifestos, cerca de um milhar de subscritores defende a obrigatoriedade da disciplina de Cidadania, criada em 2018/2019 para os alunos do 2º e 3º ciclos do Ensino Básico.
Os subscritores consideram que a aprendizagem dos Direitos Humanos e da Cidadania não é um conteúdo ideológico, mas sim uma disciplina que permite que todos conheçam os seus direitos, respeitem os direitos dos outros e conheçam quais os deveres que colectivamente têm para construir uma sociedade que a todos respeite.
É claro que não passa pela cabeça de ninguém, a não ser pela dos ditos cujos e do cripto-fascista líder do Chega, que a Cidadania seja opcional. Todos os alunos são cidadãos e como tal devem receber a adequada informação e formação que habilite os adolescentes e os jovens a melhor enfrentar o futuro.
A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, que norteia a matéria, tem como valores fulcrais a construção sólida da formação humanística dos alunos, para que assumam a sua cidadania garantindo o respeito pelos valores democráticos básicos e pelos direitos humanos, tanto a nível individual como social. Aos professores é cometida a missão de preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas, numa época de diversidade social e cultural crescente, no sentido de promover a tolerância e a não discriminação, bem como de suprimir os radicalismos violentos.
Os conteúdos trabalhados nesta disciplina, transversalmente e longitudinalmente, são temas consensuais e impactantes como os direitos humanos (civis, políticos e económicos, sociais e culturais e de solidariedade), a igualdade de género (que debate a violência doméstica e os estereótipos), a interculturalidade (diversidade cultural e religiosa), o desenvolvimento sustentável, a educação ambiental, a saúde (promoção da saúde, alimentação e exercício físico), a sexualidade (diversidade, saúde sexual e reprodutiva, e é nesta área que os paizinhos não querem que a escola intervenha mas não cuidam de saber que os filhos sejam “ensinados” pelos colegas ou pelo visionamento de filmes eróticos), os media, instituições e participação democrática, literacia financeira e educação para o consumo e segurança rodoviária.
Trata-se, assim, como refere o diploma legal que regula a matéria, de assegurar «um conjunto de direitos e deveres que devem ser veiculados na formação das crianças e jovens portugueses de modo que no futuro sejam adultos e adultas com uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos Direitos Humanos e a valorização de valores e conceitos de cidadania nacional».
Não se consegue perceber onde é que entra a liberdade de contestar verdades e valores tão consensuais, como o reconhecimento dos princípios fundamentais da sociedade democrática e os direitos, garantias e liberdades em que esta assenta; que valoriza o respeito pela dignidade humana, pelo exercício da cidadania plena, pela solidariedade para com os outros, pela diversidade cultural e pelo debate democrático; que rejeita todas as formas de discriminação e de exclusão social.
Enfim, que promova a manifestação da autonomia pessoal centrada nos direitos humanos, na democracia, na cidadania, na equidade, no respeito mútuo, na livre escolha e no bem comum.
Só por manifesto extremismo ideológico, por intencional desrespeito pelo estado democrático e de direito em que vivemos e pela sociedade organizada em que nos encontramos, se entendem estas excrescências que em nada contribuem para um melhor futuro dos mais jovens.
Infelizmente para um Portugal civilizado e moderno, estamos a assistir a uma deriva reacionária, trauliteira, xenófoba, misógina, chantagista e demagógica de contestação aos valores democráticos e constitucionais, um ataque despudorado por parte de minorias radicais ao estado civilizacional, cavalgando vergonhosamente o descontentamento, a desilusão e os insucessos do sistema político vigente. Como alternativa, o retrocesso civilizacional.
É por isso que a Cidadania e Desenvolvimento jamais poderá ser opcional. Até porque tal disciplina visa contribuir para o desenvolvimento nos mais jovens de atitudes e comportamentos, de diálogo e no respeito pelos outros, com valores como a empatia e a tolerância, alicerçando modos de estar em sociedade que tenham como referência os direitos humanos, nomeadamente os valores da igualdade, da democracia e da justiça social.
O respeito pelos direitos humanos, repete-se. Porque é o fundamental nesta matéria!

Deixa o teu comentário

Últimas Ideias

19 Março 2024

O fim do bi-ideologismo

Usamos cookies para melhorar a experiência de navegação no nosso website. Ao continuar está a aceitar a política de cookies.

Registe-se ou faça login Seta perfil

Com a sessão iniciada poderá fazer download do jornal e poderá escolher a frequência com que recebe a nossa newsletter.




A 1ª página é sua personalize-a Seta menu

Escolha as categorias que farão parte da sua página inicial.

Continuará a ver as manchetes com maior destaque.

Bem-vindo ao Correio do Minho
Permita anúncios no nosso website

Parece que está a utilizar um bloqueador de anúncios.
Utilizamos a publicidade para ajudar a financiar o nosso website.

Permitir anúncios na Antena Minho