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A fé!

A responsabilidade de todos

A fé!

Escreve quem sabe

2021-06-27 às 06h00

José Manuel Cruz José Manuel Cruz

Corro os olhos por entrevista de Plácido Domingo ao «Le Figaro». Que uma grande parte da força lhe vem da Fé, diz. Jornal que compro numa ponta do Metro, a trinta e sete estações de onde passo a trabalhar. Sal em ferida aberta, as eleições da véspera tinham escancarado a repulsa de dois terços do eleitorado, para o terço que se havia dignado a depositar voto – curiosidade minha: que diriam os fazedores de opinião? Que pensava eu, em alternativa: falta de fé? E em quem: nos candidatos? Na Democracia – nessa virgem raptada, encafuada numa cave para gozo de pervertidos?
Estranhei que até os adeptos da Le Pen tivessem debandado. Tanto o extremismo lhes era recriminado, que se abrira o partido a transfugas apresentáveis. Aposta que não pagou. Veremos na segunda volta.
Retomo a Fé, esse sabe-se lá o quê pré moderno, pré científico. A que se assemelha a Fé de um homem do século XXI? Nele, no tenor agora barítono, não quero esmiuçar a Fé invocada. Não me interessa se mete algum deus à mistura, se implica rituais, promessas ou peregrinações, sacrifícios ou jejuns. Fala-se em fé, e pensa-se em crendices. Fala-se em crendices, e pensa-se em fragilidade de espírito, em rezas, em apegos. Homem que é homem está para lá de…

Frase que não concluo, que não tenho como concluir, porque nem o último homem saberá o que é o Homem, o que foi o Homem. Quão iguais são as fés do Plácido Domingo e do Fernando Santos? Sim, porque o nosso seleccionador – ao que o próprio afirma – também é um homem de fé, e a ninguém passa pela cabeça associá-lo a uma beata-papa-missas ou a um devoto da Liga Eucarística.
Quanto nos custará aceitar que a Fé anteceda Deus, que pré-exista no Homem? Não será a Fé um programa primário do sistema, agora que nos vamos robotizando, artificializando de mente e coração? Por que mezinha substituímos a Fé que reformamos por obsolescência? Com que cola-e-veda reforçamos a nossa essência quando tudo corre pelo pior?

De que vivemos, de facto: do presente, ou do futuro? Do que temos, ou do que aspiramos? Quão perfeitos e acabados teríamos nós de ser para podermos prescindir do amanhã? E se Deus nada for além do que nele projectamos? E se Deus for da consistência dos amanhãs de que nenhum de nós prescindiria até ao final dos tempos? Daremos conta de que nos depreciámos quando desancamos no transcendente?
Martírios que Plácido Domingo teria suplantado com forças fantasmáticas que arrancava do futuro. Há mais de dez anos que não subiria a palco em Paris, e as alegações de assédio sexual, e as portas fechadas uma a uma. Santo que ele não será, como eu não o seja. Dez anos que, por mim medidos, dão conta de há quanto tempo escrevo para estas páginas, dão conta de quanto tempo levo em metamorfose.

Não me assimilo e não é sobre mim que escrevo. Limito-me, antes, a raciocinar dentro de princípio instilado na Universidade. Incutia-se-nos que património comum é aquilo que um homem singular pensa, sente ou alcança. Vale dizer, com Neil Armstrong todos pusemos pé na Lua, com Yuri Gagarin todos nos tornámos cosmonautas. Por extensão, a Fé vitoriosa de um anónimo é a via tão segura quanto sinuosa que todos podemos trilhar, assim o ousemos.
Vivemos de amanhãs emprestados pelas deformidades do presente. Vivemos no amanhã em que nos forçamos a acreditar, e ele, o tenor, dirá que valeu a pena não desistir. Anos de sombra, como dez que caem na minha conta pessoal, aparte a incomensurável satisfação de escrever para este jornal. Deplorará ele o seu pequeno deserto? Deplorarei eu o meu?

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