A responsabilidade de todos
Voz aos Escritores
2019-12-06 às 06h00
O senhor António gostava de molhar a palavra. Nunca lhe tinham explicado a teia significativa da «palavra»; conversas sobre signos linguísticos, sobre fonemas e morfemas, eram-lhe completamente alheias, ele gostava era de bater o trunfo e arrochar-se à malga. Entre visões vinícolas e estalidos bucais, a palavra encharcava-se até à tontura final. Não poucas vezes, o discurso titubeava e a palavra secava completamente. Um dia, quando as crianças voltavam da escola, estridentes e felizes, enervou-se e desatou aos berros. A gritaria feria-lhe as esquentadas fontes, e tudo atribuía às enxaquecas, ou, como lhe tinha dito o médico de serviço, às hemicranias regulares. Culpa de taninos ou sulfitos, nem pensar, que a pinga era carrascão puro dos verdes altos do Minho. Ó Tone, dizia-lhe o seu compadre Francisco, vê se medes as palavras, olha que as crianças aprendem tudo. E ali ficavam, a medir e a pesar, entre mais um duque e um ás de espadas. No jogo da sueca, com mais toque ou piscadela de olho, o rei supera damas e valetes, e tem sempre, quando copresentes, a última palavra, a palavra irrefutável de quem rege, a palavra de rei. Não adianta que nos relembrem, ó pá, olha que vivemos em república; nas cartas, rei é rei, e não adianta contestá-lo.
É verdade que a palavra, conjunto de sons articulados que transmite significado e potencia sentidos, entaramela-se, por vezes, noutras palavras, e, sob o etílico narcótico, sugere ser ou meia ou completa manta de retalhos fónicos projetados contra a parede. Em noite de garrafões, o Tone falava por meias palavras, cortava a palavra ao Chico e perdigotava-lhe cara e bigodes, tudo na ressaca de presuntos e suculentas malgas. Quando satisfeito, expunha em quatro palavras bocejantes o quanto admirava a Micas, e todos ficavam a perceber por que razão conseguia tirar a palavra da boca dos outros no momento da solene exposição. Santas palavras e santíssimas lições. Palavra! – dizia ele. Palavra de honra! – hiperbolizava. Era um homem de palavra. E culminava de trunfo em riste.
Se, na escrita, a palavra é delimitada pelos espaços em branco, na boca da mulher do Tone é um fluido sem ter fim. Ninguém lhe explicara que a palavras loucas, orelhas moucas, razão por que desatinou um dia em que lhe falaram da outra. O Tone, coitado, não tinha culpa nenhuma, nem havia caso de relevo. Acontece, porém, que, num dos seus bocejos, falou dos seios da Micas em registo elogioso, e alguém levou as palavras loucas às orelhas bem afiadas da mulher. Ó da guarda que se faz tarde. Saiu vertiginosa, entrou na tasca aos tropeções e, sem pedir a palavra, agarrou-se-lhe ao pescoço, completamente esganiçada: ? Ai tu andas a cheirar os peitos da cabrita? Eu já te digo a que cheiram! ? E pimba, acertou-lhe duas lambadas que o abanaram mais do que os graus das catorze malgas emborcadas. É verdade que palavras, leva-as o vento. As bofetadas, porém, não voaram, e espetaram-se bem nos olhos de todos os presentes. Todos ficaram a saber que, em certas circunstâncias, mais vale ter bons bíceps do que ter o dom da palavra. E que, na casa do Tone, quem tinha a última palavra era a sua santa mulher. ?
15 Março 2024
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