Ser ou não ser
Ideias
2014-12-15 às 06h00
A confiança dos cidadãos num sistema de justiça isento e independente é um dos elementos mais decisivos para a sobrevivência do regime democrático. Ao longo dos últimos anos, a justiça tem-se visto enredada numa série de casos que, infelizmente, acrescentam nebulosidade a um sistema político e social que já se encontra demasiado saturado e turvo.
É verdadeiramente preocupante que, pela sua titubeante e ininteligível actuação, o sistema judicial tenha permitido que os julgamentos se façam na praça pública, subsistindo, invariavelmente, uma crença popular de injustiça nas decisões que são proferidas. Esta situação tem duas graves consequências: por um lado, os cidadãos desconfiam que os criminosos acabam demasiadas vezes impunes; e, por outro, os julgados inocentes nunca obtêm uma verdadeira absolvição pública tamanha é a desconfiança na eficácia judicial.
Ninguém duvida da complexidade de administrar e aplicar a justiça e não se coloca em causa a qualidade, a competência e a idoneidade da maioria dos juízes, mas é preciso notar que existe na sociedade uma sensação de que as suas decisões, por mais disparatadas que sejam, estão caucionadas por uma impunidade absolutamente excepcional no ordenamento político-administrativo.
Nos últimos meses, aparte as sistemáticas violações do segredo de justiça com informações cirurgicamente difundidas para criar na opinião pública um julgamento subjectivo acerca de determinados factos e personalidades, o país foi confrontado com duas decisões judiciais absolutamente insólitas e de sentido contrário à ordem social e humanista de um país que se diz europeu, que se julga moderno e que se confessa respeitador dos Direitos do Homem.
Em Outubro soubemos que um colectivo de juízes do Supremo Tribunal de Administrativo (STA) decidiu baixar a indemnização atribuída a uma mulher que ficou impedida de ter relações sexuais na sequência de um erro médico de 172 para 111 mil euros com o argumento de que a sexualidade aos 50 anos “não é tão importante como em idades mais novas”. Curiosamente, o mesmo sistema de justiça tinha atribuído em 1998 uma indemnização de 224 mil euros a um homem de 59 anos que sofrera idênticas consequências após uma intervenção cirúrgica.
O acórdão, que foi alvo de atenção (e chacota) dos media nacionais e internacionais, denota dois gravosos preconceitos: o primeiro, de que a sexualidade dos mais velhos não tem a mesma dignidade, valor e importância que a dos mais novos, contribuindo de forma espantosa para a desvalorização social daqueles que têm mais idade; o segundo, de que a sexualidade das mulheres não tem a mesma dignidade, valor e importância que a dos homens, acrescentando discriminação à desvalorização de que as mulheres são vítimas.
Como fizeram questão de notar vários profissionais que se pronunciaram publicamente, esta decisão não tem qualquer fundamento clínico, técnico ou científico, deixando claro que o valor da sexualidade empregue nas decisões judiciais depende de preconceitos que há muito deveriam ter sido erradicados do sistema de justiça.
Nos últimos dias conhecemos outra decisão verdadeiramente inaudita a propósito de uma queixa apresentada por Manuel Luís Goucha contra um programa de televisão que lhe atribuiu o prémio de “Apresentadora do Ano” depois de ter sido noticiado que mantinha uma relação homossexual. Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa que não havia crime em chamar-lhe mulher porque “todos lhe reconhecem características comportamentais que reflectem atitudes atribuídas ao sexo feminino, tal como a sua forma de se expressar, as roupas coloridas que veste próprias do universo feminino, tendo sempre vivido num mundo de mulheres”.
A sentença, de tão preconceituosa e humilhante, há-de ser musealizada como foi o célebre veredicto que culpou umas jovens vítimas de violação por se terem posto a jeito “ao pedir boleia em plena coutada do macho ibérico”. É que, não se pode aceitar que um tribunal decida com tamanho desprezo pelos conceitos de sexo, género e orientação sexual, revelando um aterrador preconceito em relação ao modo de se comportar, de se vestir e de se expressar de um homem que não vê reconhecido o direito a ser tratado enquanto tal.
Preocupa que uma decisão deste teor contribua para sedimentar preconceitos sexistas e para validar ideias erróneas e discriminatórias acerca das orientações sexuais, baseando-se, insolitamente, no sistema valorativo de quem a profere em relação ao espectro de cores de vestuário admissíveis para cada sexo.
Quando os tribunais não protegem o direito individual à identidade nem a correcta valorização da integridade física e psicológica independentemente do género, da idade e da orientação sexual, há razões fundadas para que os portugueses desconfiem do funcionamento do sistema judicial. E, pior que tudo, quando o sistema de justiça tolera e valida este tipo de decisões há razões mais do que justificadas para que os portugueses exijam mecanismos mais eficazes de (auto-)regulação da Justiça com vista à correcção deste tipo de veredictos e à ava
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