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A meia-hasta

Entre a vergonha e o medo

A meia-hasta

Escreve quem sabe

2022-09-18 às 06h00

José Manuel Cruz José Manuel Cruz

O Conselho de Ministros decretou três dias de luto nacional, teoricamente pelo pacífico finamento de Isabel II, na prática, e tibiamente, pela morte súbita da fórmula remediadora da erosão dos rendimentos.
Foi um ar que lhe deu – à fórmula, não à monarca –, que se foi a real senhora em pezinho de lã, como aliás passou as últimas sete décadas de vida, entre serviçais e valetes, agastada quando muito por quezílias da ordem do quem dorme com quem, do quem se dá com más companhias, do quem amarmanja de olho perdido em cinturinha fina e leitosa.
Ele há destas coisas: passamos setenta anos a mangar com a senhora, agitando em leque o papel decorativo da figura, para agora acharmos que «marcou profundamente a segunda metade do século XX e o primeiro quartel do século XXI». Não estou em mim: tirando os que fremem de fervor monárquico, tirando o chapeleiro e a modista, eu só gostaria de encontrar quem não tivesse descontado ironias, assimilando algum pomposo ocioso e mimado a caricatural rainha de Inglaterra! A quem nunca terá aflorado a lábios a sentença assassina: «olha, aquele/a pensa que é a rainha de Inglaterra».

Já a fórmula de remediação dos agravos da montada de preços, essa, coitada, morreu em trabalhos de parto, o que bem encontra com um descontrolo do SNS, orgulho que os socialistas nunca se cansaram de esfregar nas ventas dos pês-esse-dês, porque tudo eles façam, fizeram e farão por uma das nobres conquistas de Abril, contra os desprezos, descréditos e rapinas, vindos à sorrelfa da direita mancomunada com os privados.
Mais longe vou, porém, nos meus sentimentos relativamente ao presente luto de Estado: serei eu súbdito involuntário da Casa de Windsor? Por força de multicentenária aliança, como pedra dura gaste e fure pedra mole, teremos nós entrado na Comunidade Britânica, espuriamente, como a Guiné Equatorial na CPLP? Estender-se-á a nós o feriado lutuoso, para que de bebida espirituosa em punho, à última gota, acompanhemos final adeus?
E eis que se me faz luz – a homenagem fúnebre a Isabel é uma elegia por Costa. Sim, como não reparar que Costa é da massa decorativa de um soberano britânico? Não cuida ele que tudo lhe seja devido, ainda que nada ele adiante? Para quantos anos vai que o nosso marajá marca a actualidade política portuguesa? Em quantas estações não apanhamos já a música de ambiência de elevador, de que boa, mesmo, é a governação da rosa – e a alusão às ilhas britânicas é evidente – e se em meio século, ou quase, não ganhamos aprumo, como não farejar que de outros é a inépcia, de Passos entre os execráveis recentes?

Tudo serve, para que nos mantenhamos em estado de vida suspensa, nesta quase morte sem luto nem vergonha. Portugal é um Purgatório. Deveríamos, aliás, fundir as palavras. Dir-me-ão, porventura, que similares são as desditas em muita parte do que é mundo. Aceita-se! Tolheram-nos com as hipertrofias do vírus. Tolhem-nos com uma guerra que ninguém quis evitar. Tolhem-nos por quase duas semanas com os épicos de alcova de uma senhora, nela exaltando louvores negados a milhões de milhões de espíritos humanos. No mínimo em deferências, falta-nos ruidosamente o que em sobra lhe inscrevemos, e os contínuos televisivos são uma afronta.
Tempos ouve que a religião era o ópio do povo – dos povos. Com outros ópios nos enxofram agora. Alforriamo-nos das religiões: de que temos nós de nos alforriar agora? De quem não encontra saídas equilibradas para o sufoco que nos assola? De que lucidez nos devemos revestir para forçarmos que a Fortuna venha ao nosso encontro? Entretanto, estamos sem haste e sem estandarte.

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