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A memória que deixamos fugir diante dos nossos olhos

Mais ação e dedicação pela saúde dos portugueses

A memória que deixamos fugir diante dos nossos olhos

Voz aos Escritores

2023-09-01 às 06h00

Fabíola Lopes Fabíola Lopes

Regressamos. Setembro é por si só o mês dos regressos. À nossa casa, à nossa rotina, às nossas ruas. À nossa cidade e ao que nos diz quem somos e que património partilhamos. E é por aqui que o meu olhar hoje vai pousar.
O portão e o jardim frontal antecipam as vistas que pousam na casa imponente e senhorial. O tempo manifesta-se nos descuidos decretados por um processo judicial demorado de atribuição da herança aos familiares, seus legítimos descendentes. As escadas convidam os passos, um atrás do outro até à altura que permite um olhar pousado em redor. Maquinaria em ebulição, preparativos para um espetáculo ou exposição ou as duas coisas juntas que hão-de acontecer ainda. Neste tempo de visitação que me foi abensonhado, esta azáfama de retirar as silvas e outras plantas selvagens e espaçosas no seu direito à terra e à luz visa como que uma preparação de um placo mais natural para algo que virá. Hoje, dia 1 de setembro, já veio e está disponível para visitação.
Mas como eu dizia, no cima das escadas há uma altura que permite um certo pousar de olhos em redor e recriar um jardim organizado e frondoso, cuidado na sua saúde e apresentação. Outrora terá sido assim. A porta alta e trabalhada como se espera. Mas antes da entrada, um castiçal bastante alto que serve também de repouso para guarda-chuvas, ante qualquer atrevimento ou descuido que possa molhar as madeiras que nos esperam lá dentro.
Lá dentro. Como será lá dentro? Ali, mesmo no centro da cidade, em S. Vicente, um palacete parado no tempo à espera dos homens de boa vontade. De boa memória, sobretudo.
Lá dentro, entre uma vasta biblioteca e as fotografias da ilustre família, as mobílias suspiram utilidade numa dança desarranjada. Percebemos a ansiedade, tudo tem o seu uso. Cada objecto, às vezes alheio ao nosso tempo mais prático, tem a sua cerimoniosa utilidade naquele contexto que respira grandes tectos trabalhados na madeira, cortinas de pescoço girafado e portas de altura condizente, como árvores sustentadoras de um jardim interior.
As escadas impõem uma certa forma de andar, de as subir ou descer, um pé depois do outro pousado, quase como que respirado no seu compasso. Isso e o vitral que as acompanha nos dois andares, magistral, imponentíssimo, exemplar. A somar a estes esplendores, uma capela. Uma pequena capela mas sem nada lhe faltar para voltarem a acontecer momentos religiosos. Até um pequeno órgão ali reside no meio dos relicários, todos à espera de serem usados novamente. Ou, pelo menos, visitados.
Uma cozinha da época, uma saleta mais íntima, com os recheios familiares, um salão para visitas, com todo o luxo delicado em minuciosos pormenores. Ali, à espera de um raio de luz, de uma clarividência, de uma vontade.
É certo que nem tudo pode ser museu, nem tudo pode ser preservado a todo o custo, se assim fosse não haveria renovação e evolução. Mas é preciso saber distinguir o valor das coisas e saber atribuir perenidade no tempo para as gerações futuras o que tem valor para a cidade e para o nosso património coletivo. E o que é exemplar.
Estou a falar do palacete de Júlio de Lima, esse benfeitor da cidade de Braga. Além de construir escolas em várias freguesias da cidade, apoiou financeiramente várias acusas sociais, deu trabalho a muitas pessoas em momentos de crise. A sua afilhada Maria José Ferro, que herdou o palacete, abriu um colégio ao lado do mesmo, o Niobe, que funcionou sem qualquer apoio do Estado. Ainda lá está. Ainda poderá, com as devidas reabilitações, servir para creche ou outro serviço de assistência às famílias que tanto precisam.
Além do valor arquitetónico do espaço e do valor representativo de uma época, há um valor de memória que tendemos a desvalorizar.
O espaço está à venda, pois os seus herdeiros não têm como fazer a reabilitação e manutenção que requer. Será que vai desaparecer este valor patrimonial do centro da nossa cidade? Será que vão nascer mais prédios e mamarrachos descaracterizadores à boleia da escassez de habitação, com tantos edifícios pertencentes ao Estado que podem muito bem ser usados para esse fim?
Como disse o nosso Pessoa, a memória é a consciência inserida no tempo. Impõe-se, então, a pergunta: qual é a nossa?

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