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Braga, quinta-feira

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“A minha casa é um mundo…”

Indispensáveis são os bracarenses

“A minha casa é um mundo…”

Escreve quem sabe

2020-04-07 às 06h00

Filipe Fontes Filipe Fontes

Diz-se que a casa é a manifestação mais verdadeira de nós mesmos porque retrata o que somos e o que queremos aparentar ser.
Entre os extremos (que, neste caso, em regime circular, acabam por se tocar), feitos ou de anarquia funcional em que a regra é de tudo possibilitar em todo o lado, não existindo disciplina nem ordem, ou de uma rigidez estrutural de “tudo estar tão no sítio” que até um livro pousado na mesa é sinónimo de perturbação da ordem pacificada da arrumação. Entre estes extremos feitos da percepção de que os habitantes são pessoas sem regras ou a regra em pessoa(s), há um “mar de hipóteses” e cenários de formas e modos de organização das casas, sempre reflexo do nosso ser e estar.

Hoje, vive-se num momento em que a casa, a nossa casa, ganha uma projecção e importância ainda mais significativas. O dito confinamento obriga-nos a permanecer em casa, hora a hora, experimentando dias sucessivos os mesmos espaços e paredes, sem intervalos ou interrupções.
Tal como as famílias, quando vão de férias, descobrem que passam o “ano” com tantas coisas, entre mil e uma actividades e tarefas, que, como tal, nunca foram confrontadas exclusivamente com o Outro familiar, verdadeiramente, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, também nós, agora, somos confrontados com a nossa casa, os seus espaços e recantos, as suas paredes e janelas, descobrindo uma atenção e uma novidade que, na verdade, não deixa de ser surpreendente para habitantes diários.

Hoje, vivemos um tempo dito de recolhimento, confinamento, quarentena ou isolamento, tempo este que nos obriga e possibilita a redescobrir a nossa casa. E a constatar que a nossa casa é, afinal, um mundo…
Da sala sentimos que é o verdadeiro espaço multiusos, ora local de reunião ou de encontro, de festa ou de confronto, o verdadeiro espaço público familiar delimitado por quatro paredes. E, de certa forma, a nossa porta de entrada para o exterior. Sim, já não é a porta de entrada da casa que não se abre para amigos ou visitas, carteiro ou representante de empresas e afins. Sim, já não é porta de entrada porque, agora, é fronteira fechada, na qual só passa quem devidamente habilitado e autorizado. A sala é a nossa ligação ao exterior, local privilegiado de conexão com o mundo via televisão, rádio, comunicações ou leitura digital de jornais e revistas. E, nesta sala feita espaço público, redescobrimos a estante de livros e o quanto é parecida com a livraria: olhamos para ele, atravessando-a com o nosso olhar, constatando quantos livros por ler, quantos livros à espera de uma leitura revisitada, quantos comprados mas sem interesse, e procedendo de igual modo a uma livraria – folheando o livro, olhando para a capa, balançando entre dois exemplares como escolha do próximo livro a ler… E, na sala, redescobrimos o quadro na parede e as fotografias de gente e paisagens conhecidas e amigas. E observamos estes objectos como verdadeiros elementos musealizados e expositivos, passando por eles olhar demorado como se uma exposição visitada num centro cultural fosse…

Fazemos da cozinha o nosso restaurante que, agora, até diversificou a sua ementa e tem novos e variados “pratos”. E que, afinal, até tem esplanada feita varanda que, a ter sido usada, só o foi para secar roupa.
Do escritório, fazemos espaço de coworking ou, recorrendo a palavra hoje tão na ribalta, teletrabalho.
E do jardim, esse espaço exterior que tão reclamado é no acto aquisitivo da casa e que, progressivamente, tantas vezes, é relativizado, fazemos parque para exercício e caminhada, motivo “para jantar fora” e voltamos a sentir apelo pela horta que, afinal, pode fornecer alguma alimentação doméstica.

Na garagem, desempoeiramos o tapete e a bicicleta, os halteres e tanta outra coisa, e transformamos o espaço em ginásio que todos os dias se abre para nós. E, nesta garagem, redescobrimos aquele espaço debaixo das escadas, acumulador de coisas e mais coisas, tantas coisas, que de tão cheio não deixa de ser espaço vazio de sentido e função (qual semelhança aos vazios urbanos da cidade).
O quarto continua a ser o nosso espaço mais individual. Mas, há quem, agora, o transforme em sala de aula (porque mais recatado e silencioso). E há quem olhe para o guarda-roupa e se imagine às compras numa loja de pronto-a-vestir.

Enfim, neste momento difícil e de contexto incerto, redescobrimos a casa como a “nossa casa” feita um mundo infindável de coisas e acontecimentos.
É mundo incompleto porque falta o outro lado, a rua e o espaço público. A comunidade e o espaço que é comum.
Por mais contraditório que seja, este momento é oportunidade de redescobrir a nossa casa. E sempre, momento de acreditar que, em breve, a porta reabrir-se-á e a “nossa casa” e a “casa comum de todos nós” voltarão a fundir-se e o Mundo ficará completo.
Acreditemos: em breve!

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