A necessidade de dizer chega
Voz aos Escritores
2023-05-19 às 06h00
Em jeito de saudação, venho falar-vos do quanto gosto de esculpir os montes e as fragas em língua portuguesa. À orquestra da passarada, as pedras respondem com um bailado inquietante. Por
isso, todos os dias são bons para celebração.
Celebrar a língua portuguesa é afirmá-la como plataforma global de entendimento, pois uma língua como a nossa vive na história, na sociedade e no mundo. É uma oportunidade de comunicação harmoniosa entre todos os seus falantes, promovendo a diversidade, a tolerância e o diálogo, salvaguardando a sua identidade cultural. A nossa identidade cultural é o que somos. É a nossa alma. É de Vergílio Ferreira a afirmação «Da minha língua vê-se o mar», a língua indissociável do mar. Por isso, a voz do mar foi em nós a da nossa inquietação.
A sua existência depende das suas particularidades de comunicação com falares diversos. Por outro lado, a nossa poesia surgiu ao mesmo tempo que a nação portuguesa. Ela é a expressão de emoções e sentimentos num texto trabalhado esteticamente. É como limpar a poeira dos nossos dias. Com origem diretamente a partir do latim, que significa "comunicação direta e livre", surge a prosa. Ela é a forma natural de comunicação entre os seres humanos. Consiste na conversa quotidiana usada pelas pessoas para se expressarem racionalmente. Temos a prosa ficcional dos romances e das novelas e a prosa dos ensaios e dos textos jornalísticos e técnicos.
Contudo, é a prosa poética a minha paixão, texto que apresenta forma de prosa, mas função de poesia. A minha escrita está contaminada pela poesia. Deformo o real noutro real completamente diferente da realidade, as histórias surgem naturalmente pinceladas, aqui e ali, com musicalidade e harmonia.
Da minha língua veem-se os montes, um linguajar único. Sou feita de pedacinhos, de versos e de histórias que vou bordando na alma. Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas acrescentam-me e fazem-me ser assim. Em cada pedaço, uma vida, uma lição, um afeto, saudade. Julgo ser assim que a vida se faz: de pedaços de outras gentes, sempre incompletos, pois haverá sempre um retalho novo, uma relíquia livresca por abrir.
Confesso, portanto, que tenho uma inclinação natural para esta promiscuidade de escrita. Tudo começara na infância. As histórias contadas ao acordar adensaram o gosto pela literatura oral na infância:
- Levanta-te, Tico. O ladrão do nosso vizinho tanto madrugou que uma bolsa de dinheiro achou! – Mais madrugou quem a perdeu – respondia eu esfuziante.
São relíquias que ficam e acariciam as minhas memórias, lambem-me a alma e embalam-me docemente nas histórias dos folhetins que eram histórias publicadas em capítulos. O folhetim ajudou muito na popularização da leitura, já que o acesso aos livros era reservado às classes mais altas da sociedade. Tinha sempre ficção para encantar os leitores e os prender, nomeadamente o público feminino. "Maria! Não me Mates, que Sou tua Mãe!" é uma das primeiras obras de Camilo Castelo Branco em suporte folhetim. Uma filha que mata e despedaça a sua mãe leva à indignação e à inquietação. Era o meu caso.
Na minha infância, o chá de folhas de laranjeira, tomado antes de ir dormir, fazia parte das noites frias de inverno à lareira. O chá fumegava na caneca esmaltada e a torrada, salpicada com azeite, aquecia a alma enquanto a candeia de petróleo se apagava com o nosso bafo. Eu temia sempre que isso acontecesse, pois tinha medo de ir para a cama às escuras. Contavam-se muitas histórias de almas penadas, e a noite era escura. Era nessa altura que a minha mãe trauteava uma balada de embalar para tranquilizar-me. Ela tinha doçura e suavidade na voz:
Sossega, minha filhinha,
que o soninho logo vem
foi adormecer o menino
ao colo da sua mãe.
É com esse aroma que me agarro às memórias e canto a língua portuguesa.
22 Setembro 2023
15 Setembro 2023
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