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A mão decepada II

Cloudneo: uma grande farsa da sustentabilidade?

A mão decepada II

Ideias

2024-12-07 às 06h00

Luís Novais Luís Novais

Os taxistas de Lima são palradores. Quando percebem que somos estrangeiros, vem um chorrilho de perguntas sobre a nossa paisagem, música, costumes e o tema preferido de qualquer peruano, mais ainda do que o futebol, a nossa comida.
Enquanto respondia à habitual pergunta: "¿De dónde eres?", um instintivo algoritmo mental já antecipava o comentário seguinte. Não me enganei: "¡El país de Cristiano Ronaldo!" Com um sorriso, repliquei que o grande CR7 é apenas o segundo português mais famoso do mundo. A resposta mergulhou-o num silencio só interrompido pela minha curiosidade: “Qual é a história mais inusitada que já viveste como taxista?” Esta questão já me proporcionou uma vasta coleção de incríveis relatos, mas nenhum comparável ao que ouvi a seguir.

Antes, porém, devo adverti-lo de que sou uma pessoa séria e que aprendi a não mentir. Sei bem que o velho Aristóteles, ao discorrer sobre a poesia — naquela época uma forma de referir-se à ficção —, a considerava não apenas mais nobre, mas muito mais nobre do que a história, porque esta está presa à verdade, enquanto aquela apenas limitada pela verosimilhança. Nesse tempo havia decorrido muito menos história do que até hoje, o que explica a modéstia do repertório conhecido pelo grande filósofo. Não viveu o suficiente para perceber que nada muda tanto quanto o já acontecido. Ainda há pouco tivemos prova disso, na aquecida celebração de novembro, com todos a falarem do mesmo, mas cada qual a referir-se a algo distinto.
Também é provável que aqueles gregos mentissem menos, o que nos remete ao mais elementar princípio de toda a ciência económica: o valor é proporcional à raridade. Ora, sendo assim, naquela época uma boa mentira devia ser tão cara quanto hoje se oferece ao desbarato.

Pois fique o senhor sabendo: o que lhe vou contar é absolutamente verdadeiro, embora desprovido de qualquer verosimilhança. E com isto apanho-te, Aristóteles, que das inverosímeis verdades nunca te lembraste. Esse campo ficou reservado aos pragmáticos romanos, mestres na arte de saber que, se a mulher de César não parecesse séria, era-lhe melhor aproveitar a vida, pois nem sequer valeria a pena sê-lo.
“Uma vez entrou uma senhora no carro, queria ir para o centro e foi todo o tempo a dizer mal do marido”. Interrompo o discurso direto para breve pincelada do ambiente circundante, uma serpenteada condução no ruído fumarento. “Depois de escarnecer do marido, a senhora já maldizia todos os homens havidos e por haver… eu que até gosto de responder, dessa vez achei melhor deixá-la no fala-que-fala, caladinho ao meu volante”.

A história foi interrompida por um jargão peruano dirigido ao condutor que se encolheu numa nica de espaço à nossa frente, obscenidade desconhecida em Portugal, mas nem assim me atrevo a reproduzi-la num jornal sério.
“Deixei-a lá na rua onde queria ficar e avancei uns bons 200 metros até ver a sua carteira esquecido no assento”. Agora está a olhar para trás e procura-me olhos-nos-olhos, dando seriedade à garantia de que abriu a bolsa, não para ver se tinha dinheiro, “que yo no soy ratero”, mas apenas buscar algum documento identificador ou morada onde entregar.
“Não imagina o que encontrei lá dentro!…” uma pausa dramática. Com a curiosidade a roer-me, disparei um desentupidor “¿Qué?”. Jura ser totalmente verdadeiro o que aí vinha: “A mão de um homem! Era claramente de um homem, vi logo que era masculina”. Nova pausa.

Fez-se silêncio. Eu: “Foste à polícia, claro”. Mas não, isso é que nem pensar: “Ficavam-me com o carro como prova, ou que lhes pagasse sua propinita para me deixarem levá-lo. Até eu teria de ficar como testemunha, mais provavelmente como suspeito ou acusado se não pagasse ao fiscal, ou ao advogado que ele me recomendasse”. Olha-me de novo. “Sabe o que fiz?”. Eu, já sem palavras, apenas um arregalo de interrogativas sobrancelhas. “Parei numa ponte e mandei-a ao rio”. “Los peces la comierón!”. O escancarado riso, seu… amarelo, meu.
O resto da viagem em silêncio. Ele num ensimesmado ar de dúvidas. Chegamos. Paguei. O troco. Já abri a porta, quase saio. Antes porém, dispara-me uma pergunta: “Tenho vindo a pensar… que português é mais famoso do que Cristiano Ronaldo?” Com um sorriso de resposta óbvia, devolvi: “Soy yo”. Gargalhou: “¡Qué buena!... vim todo o caminho a pensar nisso y era un chiste”. Deixei-o a rir. Com a experiência, aprendi que sempre querem desvendar o mistério do português mais conhecido do que o craque. E a resposta, nem verdadeira, nem verosímil. Aristóteles me perdoe.

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