Um batizado especial
Ideias
2020-02-08 às 06h00
Uma das preocupações que a UE tem vindo sempre a manifestar, de forma veemente, é a de garantir, no processo de integração, uma dinâmica de “União de direito”. O que é que isso quer significar? No fundo, significa que a União está empenhada em afirmar e efetivar uma vivência do primado da Lei, da segurança e uma previsibilidade na atividade legislativa; quer garantir a confiança dos cidadãos de todos os Estados membros na atividade das suas Instituições e na respetiva conformidade dessa atividade com o imperativo (pelo menos, formal) da democracia e do princípio da igualdade; quer solidificar e desenvolver uma cultura de respeito pelos direitos fundamentais e ainda, quer assegurar a garantia de imparcialidade e de independência do poder judicial. Essas serão traves mestras do edifício europeu. Marcam a integração.
Por isso, um pouco à imagem e semelhança do que se diz dos Estados constitucionais democráticos (dos Estados membros), no plano da União fala-se, não de “um Estado de direito”, mas sim, de uma “União de direito”. O artigo 2º do Tratado da União Europeia claramente enuncia que: “A União funda-se nos valores (…) do Estado de Direito e do respeito pelos Direitos do Homem(…)”. O artigo 49º do mesmo Tratado estabelece a conformidade e o respeito pelos valores enunciados no mencionado artigo 2º - logo, inclusivamente, pelo Estado de direito – como condição para que um Estado se torne, porventura, membro da União, sendo certo, por seu turno, que o artigo 7º, ainda do Tratado da União Europeia, prevê um procedimento – essencialmente de carácter político e declaratório – de verificação, pelo Conselho, de “risco manifesto de violação grave” ou mesmo da “existência de violação grave” desses valores fixados no artigo 2º, por parte de um concreto Estado membro. Dito isto, a própria jurisprudência do Tribunal de Justiça da União tem concretizado e desenvolvido esse enunciado; tem reafirmado, em concreto e casuisticamente, que a União é uma “União de direito”.
Vem isto a propósito da situação estranha que, pelo menos através da comunicação social, sabe-se que vai sendo vivenciada em certos Estados membros. Refiro-me concretamente ao caso da Hungria e também ao caso de Malta. A Hungria sempre tem pautado a sua conduta política por uma permanente ação desvirtuadora (sendo eufemístico!) da independência e imparcialidade do poder judicial – nomeadamente, quando este é chamado a intervir em litígios que opõem alguns direitos fundamentais dos cidadãos ao poder do Estado. O poder político húngaro parece apostado em governamentalizar o poder judicial e, por essa via, restringir (ou mesmo acabar) com a lógica de “Estado de direito”.
Num sentido relativamente idêntico, surge-nos Malta. Aí, é sobretudo o predomínio do poder económico e dos investimentos/depósitos estrangeiros – nomeada e principalmente russos – que dita a lei; não propriamente os valores do Estado de direito! Uma off – shore assumida sem complexos, fazendo tábua rasa das normas e das recomendações europeias, convivendo alegre e descontraidamente com transações obscuras de “branqueamento” de capitais, de corrupção, de operações ilícitas e desrespeitando a cooperação judicial europeia. Que o digam as autoridades portuguesas, pelo que se sabe, no no âmbito do processo (latu sensu) BES! Conjuntamente com instituições e autoridades suíças, pelo que vai sendo dito através da comunicação social, aparentemente (sob reserva de, porventura, esta perceção mediática poder não ser rigorosa), as autoridades competentes maltesas, nem sequer respondem aos pedidos e cartas das autoridades portuguesas.
Situações deste tipo, de desrespeito da “União de direito” – porque tocantes ao comprometimento do exercício independente, imparcial e efetivo do poder judicial – podem naturalmente não ser tão mediáticas, impactantes ou mesmo aparente e ilusoriamente tão preocupantes como o “Brexit”; porém, a prazo, poderão ter efeitos negativos devastadores no que ao processo de integração diz respeito. Para já, são situações que significam violação de regras europeias, que põem em xeque a cooperação judiciária europeia e criam, portanto, distorções intoleráveis no próprio Mercado Interno, no processo de integração e na respetiva legitimidade política da União como “União de Direito”. Prejudicam alguns cidadãos europeus, violando a igualdade num espaço que se pretende integrado e cujo ordenamento jurídico é aplicado – se não de forma uniforme – pelo menos harmoniosa. Depois, nestas coisas, “tal como a mulher de César”, é fundamental parecê-lo… mas sendo particularmente relevante, também, o ser.
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