Correio do Minho

Braga, terça-feira

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A mulher de Ferreiros

A responsabilidade de todos

A mulher de Ferreiros

Ensino

2020-10-18 às 06h00

Joaquim da Silva Gomes Joaquim da Silva Gomes

Nas várias narrativas que existem na sociedade, há sempre espaço para a divulgação de acontecimentos invulgares protagonizados geralmente por alguém que acaba por ficar na memória e no imaginário de todos. Esses são normalmente denominados heróis, facto que os notabiliza momentaneamente, em alguns casos, ou que perduram no tempo.
Neste sentido, vou recordar um episódio que ocorreu na freguesia de Ferreiros (concelho de Braga), há 99 anos.
O ramal ferroviário de Braga foi, desde a sua inauguração, a 20 de maio de 1875, o principal meio de transporte que ligava Braga ao Porto. Deste modo, a capacidade de transporte de pessoas e de mercadorias foi aumentada e o tempo despendido para a sua realização reduzido, não só entre estes as capitais destes dois distritos, mas também entre as localidades situadas entre o Porto e Braga.
Nesse período, as passagens de nível eram consideradas locais perigosos e onde ocorriam, ocasionalmente, acidentes. Um deles aconteceu no dia 21 de julho de 1921, no apeadeiro de Ferreiros, a última paragem antes de chegar à estação de Braga.
Então, a passagem de nível estava marcada pela sua perigosidade, uma vez que a curva acentuada e a inclinação da linha dificultavam quer a circulação dos comboios quer dos peões. Por outro lado, a passagem de nível não possuía qualquer mecanismo de segurança, nem ao menos uma cancela que impedisse os peões de a atravessarem, no momento da aproximação dos comboios.
De facto, a meio da tarde desse dia 21 de julho, pelas 16 horas, aproximava-se da passagem de nível de Ferreiros o comboio expresso n.º 255 oriundo do Porto, comandado pelo maquinista João Rita. Todavia, naquele dia, a guarda-linha havia de chegar com um ligeiro atraso ao seu posto de trabalho. Ainda assim, apercebeu-se da aproximação do comboio, como viu também que se encontrava no meio da linha férrea, uma criança a brincar. Aflita com o aproximar do comboio, Maria Isabel, a funcionária ferroviária, saltou de imediato para o meio dos carris, tentando resgatar o menino que lá se encontrava. Conseguiu empurrar a criança para fora da linha, mas, irremediavelmente, foi atingida pela locomotiva que a dilacerou causando-lhe uma morte horrível.
No dia 22 de julho de 1921 o “Diário do Minho” referia que a “dedicação da pobre mulher teve por consequência a sua morte instantânea pois que apanhada pelo cabeçote da locomotiva ali ficou inânime”.
Ao aperceber-se do desastre, o maquinista “que só viu o caso a 7 metros de distancia, pois que vinha d’uma curva parou rapidamente o comboio mas não a tempo de evitar a desgraça”. De seguida, logo se aglomerou um conjunto de populares que, chocados com as cenas de horror a que assistiam, de imediato acusaram as autoridades ferroviárias de nada fazerem pela segurança quer dos habitantes dessa zona de Ferreiros, então densamente povoada, quer pela segurança dos próprios passageiros do comboio.
Como é natural, este acidente causou uma enorme tristeza na freguesia, pois quem ocupava a profissão de guarda-linha era então muito conhecida por todos e ainda pelo facto de ser esposa de Bernardino, trabalhador da repartição de Via e Obras das linhas de caminhos-de-ferro do Minho e Douro. Além de ser conhecida na freguesia, era mãe de seis pequenas filhas, que ficaram com um futuro mais dificultado. Nesse sentido, foram várias as subscrições lançadas nos dias seguintes, para que fosse possível angariar algum dinheiro a ser entregue à numerosa família.
Por conseguinte, entendiam na altura ser urgente corrigir esta passagem de nível, muito perigosa porque, “se não fosse a facilidade de se poder passear pela linha á vontade, já a pobre da mulher, victima do seu amor pelas criancinhas se não arriscava a morrer como morreu…”.
Dois dias depois, a 23 de julho de 1921, o mesmo jornal referia que Ana Isabel, que tinha falecido “no apeadeiro de Ferreiros foi victima da sua dedicação pelos outros, querendo salvar uma creança, que não era sua, e que conseguiu salvar, arriscando a sua vida”. No entanto, o menino, filho de João de Oliveira Gonçalves Evaristos, funcionário da agência de Braga do Banco de Portugal, ainda foi transportado parta o Hospital de S. Marcos, mas acabou por aí falecer umas horas depois.
A este desastre assistiu o pároco de S. Victor, o célebre reverendo Roberto Maciel, que ainda lançou a última absolvição à mulher de Ferreiros. Numa carta publicada no “Diário do Minho”, de 24 de julho de 1921, o padre Roberto Maciel escreveu que “também corro, com o meu pequenino obulo, a favor dessas 6 orfãs, filhas de Maria Isabel, vigia no apeadeiro de Ferreiros, que tão heroicamente morreu no seu posto, sacrificando a sua vida, para salvar a dum seu semelhante”.
Roberto Maciel acrescentou ainda que “infelizmente fui testemunha do horroroso desastre, e felizmente ainda pude lançar-lhe a ultima absolvição, assistir-lhe aos últimos instantes de vida”, acrescentando ainda que se “aquela passagem estivesse suficientemente vedada, não se teria dado o desastre, não teriam ficado na orfandade tantas crianças…”.
De referir que o ano de 1921 ficou marcado por uma extrema miséria no país e em Braga. A título de exemplo, basta recordar que por aqui proliferavam muitos mendigos e os assaltos eram constantes, inclusive às próprias igrejas!
Maria Isabel, a mulher de Ferreiros, foi justamente considerada uma verdadeira heroína pelo seu ato destemido para salvar uma criança!

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