Ações e evidências do trabalho em rede
Ideias
2020-04-15 às 06h00
Em Ponte de Lima existe um Parque de Jardins, instalado na margem direita do rio Lima. Esta instalação de jardins foi inaugurada, em 2005, e todos os anos se realiza aí um Festival Internacional de Jardins, em que é eleita uma temática específica. O parque compreende, assim, um fundo de jardins permanentes, como num museu falamos das coleções permanentes. E tem também jardins sazonais, como num museu nos referimos às coleções temporárias.
Em 2010, os jardins inspiraram-se na teoria matemática do caos, aplicada muitas vezes para explicar fenómenos meteorológicos, o movimento de placas tectónicas, variações no mercado financeiro, e também o crescimento de populações. Remete para a geometria não clássica dos fractais (do latim fractus, fração, quebrado), para a incerteza, as realidades complexas, a instabilidade e as consequências inesperadas na nossa vida, decorrentes de uma qualquer alteração do seu curso habitual. Por exemplo, decorrentes de catástrofes, na linguagem do matemático francês, René Thom.
Os Jardins do Caos constituíram uma coleção composta por um conjunto de onze jardins. A lição que os acompanhou a todos foi a de que o caos semeia acaso, imponderabilidade, incerteza e imprevisibilidade na nossa vida. O caos assemelha-se a um lugar vago, impreciso e indeciso, destinado a acolher as formas de vida no seu devir. Podemos dizer que se trata de um espaço maleável, em que as coisas tanto aparecem como desaparecem, presas a traços e a vestígios daquilo a que chamamos memória. E é exatamente num espaço assim que a catástrofe do Coronavírus transformou a nossa vida, num lugar vago, impreciso e indeciso.
Mas é este espaço inquietante, habitado pelo Coronavírus, que tem a virtude de acolher, tal um dos Jardins do Caos de Ponte de Lima, formas imaginárias surpreendentes, formas que remetem para traços e vestígios das metamorfoses por que passa a nossa civilização, a nossa memória cultural e a nossa vida pessoal.
Um dos jardins do caos chamava-se O Jardim das Incertezas. Nele podia ler-se a máxima seguinte: "a ordem é um breve fragmento do caos, sendo o lugar de um controlo humano imaginário". Ou seja, a ordem é uma ilusão de controle, um mero estado imaginário.
E o que podemos dizer, hoje, é que, mais do que nunca, a ordem é, por toda a parte, no seio da comunidade humana, a mediação tecnológica. É ela que está na base do processo coletivo de configuração e construção identitárias, e também da tecelagem e da produção, tanto de memórias sociais, como me memórias individuais. Esta ordem compreende posts em blogues e em redes sociais, que retomam vídeos, filmes, registos de voz, fotografias, cartazes, textos… E compreende também novas formas de comunicação digital interativa, como no caso das reuniões virtuais, assim como das conferências e seminários científicos, e das provas e concursos académicos, igualmente virtuais. E compreende, ainda, modelos emergentes de interação, como acontece com as aplicações e os videojogos, muito concorridos, hoje, nestes dias de confinamento domiciliário.
Em todos estes casos, trata-se de uma atividade lúdica, que podemos apelidar de “bricolage”, retomando o termo utilizado por Lévi-Strauss para caraterizar o processo narrativo que constitui o mito, enfim, para nos caraterizar a nós próprios, que somos animais de fala mítica. A esta atividade lúdica, coletiva, de construção identitária e de produção de memórias, Derrida chamou-lhe “mitopoética”.
E é neste sentido que se organiza, hoje, praticamente toda a programação dos canais de televisão generalista, que não se resuma ao obsessivo e melancólico tema das notícias e reportagens sobre a pandemia. Com os cidadãos encerrados em casa, todo o tempo que escapa aos fastidiosos boletins médicos e às declarações de responsáveis políticos, sobre o avanço da doença, sobre o seu combate, e sobre as suas consequências, políticas, económicas, financeiras, no mercado de emprego, na comunidade em geral, é preenchido pelas televisões generalistas a declinar mitopoéticas, com concertos de música, comédia, poesia, canto, dança, concursos, jogos…
A declinação da vida como um jardim de plantas, o que quer dizer, como uma mitopoética, obriga-nos a um ofício de artesão, ou seja, a um ofício de poeta, de quem põe e dispõe flores, com proporção, equilíbrio e justiça, tal o deus geómetra que conhecemos em Timeu, um dos diálogos de Platão. A nossa vida é, todavia, um jardim de ordem incerta, mesmo perigosa, porque fazemos a experiência da vida como quem faz uma travessia, e não como quem faz uma passagem, uma viagem controlada, como aprendemos com João Guimarães Rosa, no Grande Sertão. Veredas. A passagem fala-nos de uma experiência controlada, dominada, sem mistério nem magia, ou seja, também sem poesia. E no entanto, tudo na vida é, definitivamente, não controlado, o que quer dizer, travessia.
Podemos fazer a passagem de um rio, de uma para outra margem. Nas passagens existe a habitualidade de um caminho conhecido. Mas coisa diferente é a experiência de uma travessia, que é uma viagem perigosa e nos mantém sempre em sobressalto. Fazemos a travessia de um oceano, de um deserto, de um mar de tentações... fazemos a travessia da vida como quem atravessa a noite, de olhos bem abertos, sonhando poder desse modo chegar de pé ao nosso destino. Era George Steiner quem numas notas para “A redefinição da cultura” nos advertia No Castelo do Barba Azul (1992) sobre a necessidade de abrir “a última porta para a noite”, porque “abrir portas é o trágico preço da nossa identidade”.
A pandemia do Coronavirus levou-me pensar no sentido da Páscoa. Tanto para judeus, como para cristãos, a Páscoa é a convocação a uma reconstrução essencial, a uma transfiguração. Convoca-nos a declinar a vida e a construí-la como quem constrói um jardim de plantas. Nesse jardim não podemos deixar de dispor flores como um poeta, com proporção, equilíbrio e justiça. Trata-se, sempre, de um trabalho artesanal, que artesanais não podem deixar de ser os trabalhos de uma vida, mesmo nos seus momentos superiores, quando uma vida se encontra em situação limite. Disso são exemplo, ainda agora, os 3 000 voluntários, que responderam à chamada para a prestação de cuidados em lares de 3.ª idade, no combate imposto pelo Coronavírus (Expresso, 11.04.2020). A Páscoa, seja para judeus, seja para cristãos, reconduz-nos à palavra essencial, fazendo-nos percorrer os lugares do invisível do visível, que é um trabalho de resistência e transformação, lá onde se estabelece o sentido de comunidade. A Páscoa nunca foi outra coisa que uma última palavra da vida sobre a morte.
28 Março 2025
28 Março 2025
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