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A talhe de foice e martelo

Arte, cultura e tecnologia, uma simbiose perfeita no AEPL

Ideias

2017-11-03 às 06h00

José Manuel Cruz José Manuel Cruz

Comemora-se o centenário da Revolução de Outubro, que por outras contas calha em Novembro, pelo desfasamento entre calendários - Gregoriano, o nosso; Juliano, o vigente na Rússia de outrora. Celebração circunscrita a académicos, a nostálgicos e teimosos, ao lúmpen de visionários ou obnubilados que alimentam a miragem de uma ressurreição dos sovietes e da ditadura do proletariado. Veremos se o futuro lhes dará razão.
Recuo a 1961, ano em que a ousadia dos bolcheviques dobraria o quadragésimo quarto aniversário, ano em que brilharia a estrela de Iuri Gagarin, acima das demais. Por via das dúvidas, assiná-lo que se trata do camarada que, a 12 de Abril desse primeiro ano da década de sessenta, realizaria a inédita façanha de concluir uma órbita em torno da Terra, pilotando a cápsula Vostok 1. Penso que não se negarão os créditos da ciência e da engenharia vermelha de Estado, por muito que o programa espacial de soviéticos e americanos tivesse ido beber aos avanços da tecnologia de foguetões alemã. Reparação de vencedores.
Recuo a 1961 porque outro relevante centenário se comemoraria nesse ano. Desconheço se o fizeram, facto que não me impede de o trazer a estas páginas. A 19 de Fevereiro de 1861, quebravam-se - finalmente - os grilhões da servidão feudal. Um camponês que nascesse nesse dia - um hipotético antepassado do Iuri cabeça nos ares - não estaria mais na umbilical dependência de um terratenente, de nobre de enrolada linhagem, de funcionário ou burguês nobilitado por serviços prestados a Suas Altezas Imperiais.
Na Rússia dos czares, até 1861, servos nasciam, homem e mulher, condição hereditária e imutável. Servos se vendiam e compravam, propriedades se transacionavam com os servos da gleba a elas adstritos. Fugir era crime. Albergar um servo fugido crime era. Nada impedia o nobre de alforriar os seus serviçais, até de com eles compartir terras, mas nada o obrigava a conceder essa bendita liberdade, ainda que rogada e batida a troco de dinheiros, amealhados a custo, com os poucos que criatura ou casal roubassem à boca, em prol da constituição de pecúlio que satisfizesse o resgate. Nesse Fevereiro, para cima de vinte milhões de camponeses adquiriram dignidade; desse avante, nenhum estatuto caucionaria caprichos e desmandos, vergonhas infligidas por duquesas e baronias.
Fantasio a genealogia e a longevidade dos antecessores do Iura. Quero seguir o curso da História dentro dos limites de singular família, arbitrariedade que não me pesa na consciência. Houvesse alma centenária, nessa URSS de 1961, robusta criatura que tivesse resistido a guerras e revoluções, a fomes e provações indescritíveis, fosse espécime de tal resiliência trisavó do cosmonauta, tivesse vetusta babulya nascido, mais coisa, menos coisa, ao redor da abolição da norma feudal, pois poderia dizer, a grande avó, que havia tomado os primeiros ares sob anacrónico estado feudal - o último da europa culta, se lá quisermos incluir a Rússia nas suas diferentes roupagens - para vir a exalar o último suspiro sob as brisas do primeiro estado da Era Espacial. É obra, não?
Plural realidade, torturante diacronia. Iurotchka elevado a Herói da Humanidade, rapazoto filho de carpinteiro e assentador de tijolo, ao sabor das necessidades do kolkhoz, e de mãe ordenhadora. Méritos casados com deméritos, numa sociedade particular e em todos os fenómenos do Real, a bem dizer. Coitados dos que procuram verdades simples e coerências estruturais. Coitados dos que fecham os olhos às tortuosidades das bengalas em que se apoiam. Por mim, acho que nada deturpo ou falseio, tal que, como justificação de viés opinativo, devesse eu explicitar declaração de interesses. Mas cá fica: sou russófilo, e não duvido que muitos dos meus leitores o saibam.
No campo das ideias, procuro águas com verga de freixo, a pulso, e confiando nas minhas sensações. Sei que das Rússias - das de ontem, das de hoje - velhos companheiros meus dizem cobras e lagartos, palavras que ecoam na grande imprensa, e que credíveis soam, em virtude de venerandas barbas. Eu, pobre vedor, ando a esmo, de cabeça limpa, que de outro modo se falham os mananciais de águas puras. Não louvo, nem defendo o que não sei: alinho alguns factos, apenas; torço o nariz a verdades de pronto-a-comer.
Esta última, agora, a de que o bandalho do Putin estaria na origem do desacerto entre catalães e castelhanos. Mas ele há quem desconheça o que os falangistas fizeram e disseram sobre bascos e catalães? Mas ele é preciso que um Putin qualquer mexa os cordelinhos? Outra questão - concordo - é a de que talvez não estejam reunidas as condições para que se avalize um desmembramento da Espanha. Mas não é isso que transforma em amáveis amantes aqueles que na verdade não se suportam. Até poderão ir para a cama juntos. Enfim, de olhos fechados, bem pode saber o que malinho pareça.

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