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Braga, segunda-feira

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A Viagem

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2017-08-04 às 06h00

Escritor Escritor

Ana Maria Monteiro

- E então compreendi tudo. Mas era tarde, estava morta. Gostou da minha história? Ainda aí está?
Assim terminou ela a história que me contou nessa altura, durante a mais estranha viagem de comboio que alguma vez fiz.
Mas deixem-me voltar atrás, para que possam compreender melhor de que falo.


Aquele foi um dia que começou igual a muitos outros: tinha uma reunião no Porto ao final da manhã e, como tantas outras vezes, iria apanhar o Alfa na estação do Oriente. A viagem dura pouco mais de duas horas e geralmente aproveito para ler alguns jornais ou para me dedicar calmamente à leitura do livro do momento.
Levantei-me cedo, sem exageros, já tinha comprado o bilhete. Compro sempre com antecedência para viajar de frente e ao fundo da carruagem. Patetice minha, mas nunca gostei de sentir presenças atrás de mim.
Quando o comboio chegou entrei e sentei-me verificando com agrado que o lugar ao meu lado se encontrava desocupado.
A satisfação durou pouco. Efectivamente, mal o comboio arrancou, sentou-se nele uma mulher.
Suspirei interiormente, conformada; não seria a perfeita e desejada solidão que antes me acolhera, mas não tinha a menor importância.
Estava enganada - a senhora tinha uma imensa necessidade de falar e ignorou descaradamente os meus sinais de óbvio desinteresse. Aliás, não se limitou a ignorá-los: ao final de meia dúzia de frases, pediu-me especificamente que a ouvisse pois precisava de contar a sua história:
- “Escute-me, por favor, sinto que enlouqueço se não sair deste sítio escuro. E para me libertar preciso mesmo de contar a minha história.”
Não tive pois outro remédio que não ouvi-la. E que história!
Inicialmente cheguei a supô-la louca. E o caso não era para menos. Começou por informar-me que não estava viva, que era uma alma penada. Segundo ela, vivia no limbo desde há tempo e a única forma de sair dele seria contando a sua história, razão porque era tão importante que a ouvisse.
Claro está que não acreditei, não sou assim tão crédula. Mas que outra coisa podia fazer a não ser escutá-la?
Já havíamos passado Vila franca de Xira quando me disse:
- Vejo que não me acredita. Consegue ver-me, ouvir-me, até tocar-me, se quiser. Os seus sentidos dizem-lhe que estou aqui e a sua razão entende que se aqui estou é porque vivo. A razão é enganadora, acredite. E os sentidos ainda mais.Eu também era assim e agora estou onde estou, como já lhe referi.
e continuou:
- Notou que o revisor não me pediu o bilhete? Que nem sequer olhou para mim? Que ainda ninguém o fez? Não se preocupe que não o farão. Ninguém me vê, só você. Desculpe, não me apresentei nem sei o seu nome. Eu sou Fátima, Fátima Andrade.
Vi-me na necessidade de me apresentar também.
- Cristina Freitas.
E então começou finalmente a contar-me a sua bizarra história.
Eu nunca tinha ouvido nada de tão absurdo. Contou-me que uma noite, estava a dormir quando acordou ao som da campainha da porta. Foi ver e era um desconhecido que lhe perguntou se podia entrar. Facultou-lhe a entrada e, como sentia frio, regressou à cama. Estarrecida com a sua calma e comportamento absolutamente despropositados, acreditou estar a sonhar e decidiu aproveitar o sonho. O desconhecido apresentou-se e sentou-se na beira da cama começando a falar. Explicou-lhe que já não era vivo, que vivia no limbo e contou-lhe a história da sua vida e de como ali fora parar.
Fátima confidenciou-me que estava até divertida com a situação e lhe perguntara:
- Mas se não está vivo e eu estou obviamente a sonhar, por que razão tocou à campainha e me fez sair da cama, quando podia perfeitamente entrar sem necessidade de todo esse aparato tão próprio dos vivos e acordados?
“Não quis assustá-la.” Foi a resposta dele. Coerente, convenhamos.
A sua história também fazia sentido. Tinha sido um homem normalíssimo, que crescera, estudara, trabalhara, casara, tivera uma filha que morrera ainda criança, divorciara-se e por fim morrera.
A história dele era longa, mas podia resumir-se a isto.
Fátima contou-me que, em alguns momentos do relato, notara afinidades com a sua própria vida - que também me relatou.
Ainda que ela não tenha chegado a casar nem a ter filhos, havia coisas em comum.
“E não há sempre?” pensei eu.
Contou-me que tinha vivido um grande amor na juventude mas que o noivo havia morrido em circunstâncias nunca apuradas durante a Primeira Guerra. Perante o meu espanto, esclareceu-me que se encontra há muito tempo no limbo e que não lhe fora fácil engendrar a forma de sair momentaneamente dele para se materializar perante mim.
- “Leva muito tempo e não é fácil conseguir a materialização. Mesmo que seja apenas para ser visível a um único humano. E também tive que garantir um lugar onde soubesse antecipadamente que ninguém se iria sentar durante toda a viagem. E junto a um ouvinte minimamente preparado”.
Preparada?! Eu?!
Bem, reconheço que não corri com ela e que a ouvi.
E, tal como ela, também me senti identificada com alguns momentos e episódios da sua vida.
Também vivi uma paixão arrebatadora e não me casei com esse rapaz, por outros motivos. Acabei por casar com outro, um homem inteligente, capaz, bom companheiro, com alguns defeitos também, mas no geral, pode dizer-se que casei bem. No entanto, após cinco anos de tentativas infrutíferas para que eu engravidasse, ele não aguentou mais e saiu da minha vida.
Foi frustrante para ambos, mas pior para mim uma vez que ele depressa encontrou consolo junto de outra rapariga que lhe deu três filhos em igual número de anos.

(Soube há tempos que hoje em dia são os cinco um bocado infelizes uns com os outros e tive pena. Mas admito que também senti um certo regozijo - de que me envergonho um pouco)
Também ela, tal como eu, perdeu os pais ainda cedo e sentiu o peso da solidão e da responsabilidade de estar sozinha na vida. Ambas acabamos por compreender que, na realidade, todos estamos sozinhos a todo o tempo, mas isso não interessa de momento a este relato.
Estávamos quase a chegar ao Porto quando ela terminou.
Confesso que nem me apercebi da passagem do tempo, porque acabei por me interessar realmente pelo seu relato.
O estranho homem que a visitou nessa noite acabou a sua narrativa dizendo:
- Então gostou da minha história? Ainda aí está?
E ela, olhando-me, o olhar perdido, quase diluído, acrescentou:
- E então compreendi tudo. Mas era tarde, estava morta. Gostou da minha história? Ainda aí está?
Senti até um sobressalto. Ela tinha desaparecido. E então compreendi tudo. Mas era tarde.
E agora estou aqui e escrevi a minha história.
E o leitor? Gostou? Ainda aí está?

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