Indispensáveis são os bracarenses
Voz aos Escritores
2024-04-05 às 06h00
Quero-vos contar, minhas filhas e netas, quando o país se arrastava amordaçado, enclausurado num regime castrador, um país comandado por um ditador de nome António de Oliveira Salazar e mais tarde pelo seu seguidor, Marcelo Caetano. Foram mais de quarenta anos de agonia. O ditador, a quem alcunhavam Botas, assim que chegou ao poder, determinou-se em pôr ordem num país destrambelhado por sucessivos governos de pouca dura, governos instituídos após a instauração da República que não tinham mão num país assolado por uma crise económica e política sem fim à vista. O Botas acenava ordem e progresso, justiça e estabilidade, pão, vinho e habitação, o fim dos papadores oportunistas e da corrupção. O povo português acreditou, esquecido das ditaduras que varriam a velha Europa: Francisco Franco, Benito Mussolini, Adolfo Hitler, déspotas que se apoderaram dos destinos de milhões de seres humanos. Não, minhas filhas e netas, Portugal não teve uma ditadura branda, como muitos teimam em afirmar. O Botas instituiu o Estado Novo de partido unitário, a União Nacional, poder que não admitia contestação. Os opositores ao regime eram perseguidos, aprisionados, torturados. Caxias, Aljube, Peniche, Tarrafal, presídio da Trafaria, lugares de ignominia esquecidos dos direitos humanos em prol do bem da nação, da pacatez das vidas do rebanho pastoreado com mão de ferro. As leis do regime estenderam-se à tacanha mentalidade de um povo nada instruído. O povo quer-se inculto, pouco pensante, o povo não sabe o que quer, deem-lhe o essencial da sobrevivência que o povo modera-se, o povo precisa de rédea-curta, é como as crianças, arvorava o ditador defensor do regime paternalista e autoritário, avesso a desordens e a desobediências. Na verdade, Portugal não tinha o essencial, a pobreza flagelava o país de lés a lés, as condições de saúde eram precárias, a taxa de mortalidade infantil das mais altas da Europa, a educação residual, poucos tinham acesso ao ensino, os níveis de analfabetismo roçavam a ignorância. A censura, conhecida pelo lápis azul, proibia livros, filmes, notícias jornalísticas, rádio e televisão. Tudo era esmiuçado, controlado, rasurado, calado, um país açaimado em nome da ordem pública e dos bons costumes. Portugal sobrevivia no medo. A Polícia do Estado não se continha nos encarceramentos, nas torturas, nas deportações para o campo de concentração do Tarrafal, o campo da morte lenta. Os Pides e os chibos sobejavam. O vizinho podia denunciar só porque sim, para ficar bem com o regime, salvar a pele acobardada e a palavra suja de Judas, por vezes comprada. E nós, as Mulheres, minhas filhas e netas, eramos seres de segunda, sufocávamos num regime machista que defendia, numa hipocrisia encenada, o lugar doméstico da Mulher e exaltava, pomposamente, o seu elevado valor numa sociedade podre e paupérrima gerida pelo lema Deus, Pátria e Família. Apontava-se à Mulher o papel de fada-do-lar, parir, cuidar dos filhos, dos velhos e do marido, fonte de sustento da casa, homem a ser poupado das arrelias caseiras, coitado, que a casa chegava moído de cansaço, um mouro de trabalho querente de paparicos e mordomias, nada de enfadá-lo com questões de somenos nem com as impertinências da canalha, os legítimos descendentes, que numa ironia sem graça da lei do homem, pertenciam aos pais. Na verdade, minhas filhas e netas, as Mulheres eram escravas, pertença do pai e depois do marido, Mulheres que labutavam dentro e fora de casa, ganhavam ordenados inferiores aos dos homens. A Igreja pactuava nas leis machistas e discriminatórias. A concordata de 1940 proibiu o divórcio. A conveniência religiosa casava com a mentalidade castradora e tacanha. O marido podia exigir ao patrão que despedisse a Mulher. A Mulher era sua subjugada, carente da sua autorização para se deslocar ao estrangeiro, impedida de ser empresária, de gerir o próprio património e de ter conta bancária, de exercer certos cargos públicos, não ficava bem ser juíza, diplomata, embaixadora, não ficava bem ser enfermeira casada, Mulher casada não mexe em vergonhas alheias, nem se admitia as professoras primárias anilhadas com badamecos, o bom e protector governo é quem decidia se o noivo da mestra de escola era ou não idóneo a desposá-la. Não ficava bem ser-se Mulher, Mãe-solteira, Mãe-separada, Mulher encalhada, Mulher falada. A Mulher ousada, que com destemor reivindicava os seus direitos, torturava-se. Nas prisões políticas não havia discriminação pelo sexo, as presas sofriam as mesmas atrocidades dos presos, sem contemplações pela sua pretensa inferioridade e delicadeza física e mental. Quero-vos contar, minhas filhas e netas, o quanto nós, Mulheres e meninas, eramos recalcadas, flores que não floresciam, atiradas às vontades arbitrárias dos homens, presas a um género menor. Poucas de nós tinham acesso ao ensino superior. Ocupávamos os lugares inferiores de uma sociedade machista. Eramos o sexo errado. O sexo fraco. Na verdade, minhas filhas e netas, a fraqueza não habitava em nós. Mesmo furtadas de Liberdade e de direitos levávamos a vida em frente, a vida madrasta para muitas de nós, e em terra ficávamos embargadas de dor e cansaço ao ver por mar partir os nossos maridos, filhos, netos, noivos, irmãos e primos para a guerra colonial a mando do Botas ditador e do seu aprendiz Marcelo Caetano. Outras amarguravam no Portugal depauperado, viúvas de vivos na eterna espera dos maridos emigrados. Quero-vos contar, minhas filhas e netas, do nosso florescer naquele 25 de Abril de 1974, a nossa Revolução dos Cravos Vermelhos que celebra meio século. Quero-vos pedir que cumpram Abril. A Democracia é frágil e não se alcançou sem sofrimento. Ventos de descontentamento sopram por Portugal e pela Europa. Vozes apregoadoras de moralismos sebastianistas e bacocos perigam a Liberdade, a Democracia, os Direitos e as Garantias. Lobos matreiros, sedentos de poder, disfarçam-se com peles de cordeiros. Para que a História não se repita, há que conhecê-la e interpretá-la. Minhas filhas e netas, desejo que, nos anos vindouros, possamos sempre dizer: Abril, eu te sinto em flôr.
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