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ADELITA, de José Miguel Braga

Expropriaram parte do meu terreno. E agora?

ADELITA, de José Miguel Braga

Voz aos Escritores

2022-04-29 às 06h00

José Moreira da Silva José Moreira da Silva

A vida, a realidade. Um jornal, uma fotografia, a emoção, o olhar, a imaginação. Um hospital. A realidade e a ficção. Pensar em possibilidades de figuração, em soluções narrativas, em balões e em banda desenhada. Recordar intertextos, textos lidos. Talvez «Finisterra», de Carlos de Oliveira. Talvez «Divinas palavras», ou «Luces de Bohemia», de Valle-Inclàn. Porque há neles desenhos infantis, temas figurativos, paródias ao Inferno, distorções da realidade, inverosimilhanças, complexidade narrativa. E porque neles há, ainda, diversas propostas de representação da realidade, se problematiza a relação entre autor, narrador e personagem, e bem assim a noção de «romance» estabelecida na teorização literária.
Leio «Adelita», de José Miguel Braga.

Diz JMB que em arte tudo é possível, e que a ficção é melhor do que a realidade. Evidentemente, o real existe, seja a cidade do Porto, seja a cidade da Régua, existem os cafés e os restaurantes onde se comem saborosas tripas e se bebe um excelente vinho, como existem os comboios e as paisagens, tudo inscrito na memória cultural do autor empírico. Não renegando a «falácia biografista», é natural a presença de ligeiros traços da vida de cada autor nas suas obras. Ao fim e ao cabo, a imaginação criadora parte sempre da realidade. Sugerir, portanto, que há em «Adelita» pequenas marcas da vida do autor, não parece abusivo.

A ficção, no entanto, é melhor do que a realidade. E há, como referido, múltiplas formas de figurá-la. Posso, por exemplo, fazer confluir o autor textual com um narrador, simples ou híbrido, que vagueia no seu próprio estatuto e nas personagens criadas. No caso presente, Salvador Milagres e o espanhol quase português, Gonzalez (reminiscências, histórias), em osmose com o narrador híbrido, ficcionam a «história», plasmada nos desenhos do doente Gonzalez e figurada literariamente pela personagem Salvador. Uma «história» com aspas, porque ao narrador ela interessa pouco e os cenários valem o que valem. Uma «história» quase sem arquitetura, cheia de solavancos mentais, escrita nos cantos de um qualquer café, nos mirantes, ou na trepidação dos comboios. Uma «história» que se escreve enquanto o narrador diz que a vai escrever. «De vez em quando sai-me uma ou outra frase engraçada», diz de forma irónica, e esse exercício reflexivo sobre a própria construção literária vai impondo fórmulas de apreensão estética.

O que é um romance, o que é a literatura? Enquanto autor empírico posso imaginar-me um narrador que conversa consigo próprio, com as personagens que recria, defluindo e confluindo de cá para lá e de lá para cá, figurando realidades a partir de desenhos que constroem essas próprias realidades, ativando a imaginação criadora e criando interseções entre a realidade vivida e sentida (Porto, Régua, cafés, comboios) e a realidade imaginada. Quem é Salvador, quem é Gonzalez, senão emanações da memória e de uma forma específica de figuração, que é o desenho? Porque se entrecruzam hibridamente estas personagens, seja na exposição física, seja na espiritual? Por que razão um autor recorda e recria uma personagem que, a caminho do inferno da sua morte, vai desenhando outras figurações, incluindo personagens, senão pelo desejo de que as coisas assim aconteçam, ou de que assim pudessem ter acontecido? Gonzalez desenha e Salvador escreve sobre o que ele desenha.

Naturalmente, porque detentor do mágico poder da escrita, Salvador fala com G. em qualquer lado, na página seguinte, ou no meio do romance. Salvador, ou o narrador, ou o autor, detêm o espantoso poder da criação literária. Como é dito na página 61, «Se precisares de alguma coisa, basta pensares nisso que eu apareço». Imaginar, pensar, instituir imagens, verdadeiras ou falsas («a verdade e a mentira são indispensáveis, como sabes»), criar elementos literários de distração (recordação: o mito do gato a tocar violino à janela), tudo numa «baralhação atómica» que culmina na aparição de Adelita, que surge montada num cavalo branco com uma arma na mão, Adelita que, sendo emanação, como tudo o que se expõe literariamente, corresponde, a acreditar no que diz o narrador, à soma de todos os amores, sobretudo dos que nunca o foram. Adelita surge assim relevada como a figuração mais importante de todo o romance, não porque detenha uma função específica enquanto personagem, mas porque é esta súmula que se explica na palavra «amor». Daí a importância do título: «Adelita. Adelita. Só ouço a palavra mágica. É o título, G, eu já percebi, fica descansado». E assim se vai construindo uma narrativa autoconstruída, em que o narrador é um e vários ao mesmo tempo, e em que aquele que escreve anda «de trás para a frente a juntar palavras a ver se encontro algum nexo no meio disto». Nexo que parece surgir no hospital, quando a enfermeira identifica Gonzalez e Salvador como personagens «verdadeiras» e não imaginadas, mas que se perde no decurso diegético. Determinar a tipologia narrativa não é fácil. E o autor tem consciência disso: «o narrador trabalha como um burro, coitado. Ainda por cima vai ter de aparecer de vez em quando na história».

Isto de escrever um romance tem muito que se lhe diga. Principalmente, porque nem sequer sabemos o que é um «romance». Adelita é uma figuração saída da memória e de um desenho. Uma emanação, como tudo o que dele se releva. E também as personagens: «Adelita, queria que conhecesses o meu amigo Salvador. Eu vou chamá-lo, é fácil. Basta desenhar-lhe uma orelha e um bocado de pescoço e ele toma forma. Para te dizer a verdade, foi ele o melhor desenho, o único que não tem preço».
E assim se constrói um romance «cheio de solavancos mentais», com côncavos e convexos, inverosimilhanças e desconstruções literárias, tudo o que um dia pressenti na paródia ao inferno de Dante, e na criança sentada no osso da baleia.

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