A responsabilidade de todos
Voz aos Escritores
2018-12-21 às 06h00
Que o ser humano nasce com capacidades linguísticas inatas é, segundo a teorização generativa, uma evidência. Que o ambiente e a cultura em que o ser humano evolui são importantes para a formatação linguística, é, segundo outras teorias, também uma evi- dência. A verdade é que a criança, quando nasce, e se calhar mesmo antes de nascer, contacta com o mundo, vendo, sentindo e pressupondo formas e movimentos que, paulatinamente, vão definindo e clarificando a sua gramática, feitas de regras, de estruturas lexicais e sintáticas e, o que é muito importante, semânticas. Ao ver as coisas do mundo, ao aprender a denominá-las, ao atribuir-lhes um significado e, pela conjugação deste com outros significados, ao atribuir-lhes sentidos, a criança floresce no seu conhecimento universal.
Para o conhecimento do mundo e sua correlativa expressão, possui e desenvolve a criança mecanismos de pensamento e de linguagem variados, entre os quais se destacam a comparação e a metáfora, a metonímia e a hipérbole. Olhando uma flor, analisando as suas características exteriores e sensíveis (cor, cheiro), a par de outras subjetivas, adequadas ao seu sentir momentâneo (beleza, alegria), é capaz de estabelecer analogias e similitudes, dizendo «Hoje, sou uma flor», ou «Sou bela como uma flor». Este processo de utilização da natureza para a descrição de estados interiores é absolutamente humano, e atinge o seu auge simbólico na arte a que nós chamamos poética. A natureza tem flores e plantas, pedras, água dos rios e do mar, animais incríveis com que o ser humano contacta, que doma, ou que, selvagens, embelezam a natureza. A beleza, porém, como sabemos, pode conter-se numa amplitude de estados e atos que a cultura enquadra no feio e no bonito, no bom e no mau, no bem e no mal.
No contexto da discussão sobre linguagem inclusiva, complexa e potenciadora de conflitos dentro dos próprios códigos linguísticos, lemos em texto recente uma crítica a expressões fixas da língua, com o argumento de que ferem a dignidade dos referentes em causa. Sugere-se que, em nome da dignidade do touro, por exemplo, se apague a expressão «agarrar o touro pelos cornos». E sugere-se uma substituição por algo como «agarrar a rosa pelos espinhos», ou algo equivalente. Se, no âmbito da reflexão ética e política, o conceito de «dignidade» é altamente relevante, acionando o próprio conceito de «pessoa», que dizer da sua atribuição aos animais ou às coisas? É verdade que as culturas, as línguas que as conformam, valores éticos e morais, se movem nas longas diacronias e, por vezes, até em curtos lapsos temporais. É verdade, também, que determinadas expressões linguísticas cristalizaram no tempo informações resultantes de uma determinada cultura, informações ou sentidos que, na nossa sincronia e em função dos valores do presente, são recebidas como ofensivas ou como atentatórias da dignidade dos seres.
Sendo a metáfora uma figura da linguagem que usamos constantemente, pela necessidade comparativa e analógica, e aceitando como verdadeira a afirmação, analisada cientificamente, de que usamos quatro metáforas por minuto no nosso discurso, como impedir, sem matar a própria língua, o seu uso no nosso dia a dia? De que forma se balizaria o pensamento, se conduziria a produção discursiva, se evitaria, no fundo, o contacto estético com as coisas, figurado em locuções, frases ou poemas? Porque se transferem da vaca e da cabra, do cão e do boi, do porco e do burro, da víbora e da lesma, traços semânticos do seu significado, para o ser humano? Como diremos, em língua assética, «és uma lesma», sem perder a força analógica, e mesmo estilística, que tal expressão contém?
Nesta proposta de higienização da língua, em nome da dignidade dos seres, onde poremos expressões como «besta quadrada», «barata tonta», «amigo da onça», «acertar na mosca», «dar pérolas a porcos», ou «engolir um sapo»? É aceitável usar argumentos de ordem cultural para limitar o uso livre da faculdade da linguagem?
Que tem a «dignidade» da barata, da onça, da mosca, do porco ou do sapo, a ver com o uso livre do meu sistema linguístico que, aberto e universal como é, não deve ser limitado por crenças particulares ou imposições exteriores?
Dizia Wittgenstein que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo».
É na esfera duma afirmação deste tipo que tudo se joga. Que, em primeiro lugar, abramos os olhos ao mundo, e que o seu limite seja infinito. Que, depois, evoluamos na nossa linguagem em função de valores éticos elevados da nossa cultura, inscritos nos elementos linguísticos fundamentais, com relevo para o léxico. Que, finalmente, compreendamos que nenhum limite pode ser imposto externamente, e que, quando dizemos «burro como uma porta», «fazer figura de urso» ou «agarrar o touro pelos cornos», não estamos, de modo nenhum, a retirar dignidade à porta, ao urso ou ao touro.
Pelo contrário, usamo-los como exemplos hiperbólicos e metafóricos da nossa força intrínseca, ou das nossas quedas, tudo o que conforma, no bem e no mal, a pessoa humana.
15 Março 2024
08 Março 2024
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