Um batizado especial
Ideias
2019-05-06 às 06h00
Foi há 45 anos. Da “noite e do silêncio” (Sophia), emergimos para liberdade. Mas com o tempo, os sonhos de comunidade, mesmo que atabalhoadamente expressos, parecem dar lugar a uma comunidade sem sonho. E o sentido de humanidade, ainda que mal esclarecido, parece ter-se afundado na crise do humano.
De acordo com o Jornal Económico (4.03.2019), entre 2008 e 2018, as “ajudas” do Estado ao sistema financeiro português custa-ram aos contribuintes cerca de 17.200 mil milhões. Ou seja, cada português já desembolsou 1.800 euros, entregando-o ao sistema financeiro, o qual, é tão lesto a dividir os lucros, sempre que existem, pelos acionistas, como a socorrer-se do Estado, quando são feitos negócios ruinosos.
De facto, os bancos tornaram-se, em Portugal, um substância tóxica, altamente perigosa e explosiva. Mas o Estado português, qual Sísifo a subir a montanha, parece sem redenção, condenado a ter que os salvar, hoje, amanhã e depois, uma, duas e três vezes, numa missão danada e intérmina.
Em 2008 deu-se o colapso do BPN. A queda do BES foi em 2014. Entretanto, houve as “ajudas” do Estado ao MIllenium BCP, ao BPI, ao BPP, ao Banif. Em janeiro de 2019, já tinham sido injetados na Caixa Geral de Depósitos mais de 4.000 milhões de euros do erário público. E a resolução do BES já havia custado ao Estado cerca de 5.000 milhões de euros.
Mas, com os bancos, nunca deixámos de nos surpreender. Na semana passada foi notícia que perdoaram mais de 100 milhões de euros de dívida a duas empresas de João Pereira Coutinho. E ainda estamos para ver no que vai dar o Montepio, com uma certeza, todavia, que não vai ser boa coisa.
Que Oliveira e Costa (Presidente do BPN), Armando Vara (administrador CGD), João Rendeiro (Presidente do BPP), Duarte Lima (antigo Presidente do Grupo Parlamentar do PSD), passem uma temporada na prisão, em nada atenua o sentimento que os cidadãos têm sobre a impunidade de que gozam banqueiros e políticos. É que parece não haver modo de combater a peçonha que empesta e envenena a democracia, uma praga de portas giratórias entre a política e os negócios, e de reguladores e regulados, com aqueles que hoje regulam a serem regulados amanhã e vice-versa.
Sem se fazer rogada, a Comissão de Ética da Assembleia da República acaba de ilibar todos os deputados envolvidos em casos de incompatibilidade de funções (Expresso, 27.04.2019). Mas quem formulou os pareceres foram colegas de partido. E a Comissão não chegou sequer a pronunciar-se sobre as pequenas vigarices dos deputados, por viagens duplamente subsidiadas, por moradas falsas e presenças fantasma. Pode parecer uma piada, mas pelos vistos, estas pequenas falcatruas caem fora da alçada da Comissão de Ética.
E entretanto, os cidadãos comuns são ameaçados com uma reforma da Segurança Social, em que é proposto fixar o período normal da reforma em 70 e mais anos, a quem fez descontos de pelo menos 40 anos. O próprio antigo presidente da República, Cavaco Silva, já entrou neste debate. Em sua opinião, vem a ser necessário, lá para 2050, fixar a reforma aos 80 anos. Mas Assunção Esteves pôde reformar-se aos 42 anos, com uma pensão por dez anos de trabalho como juiz do Tribunal Constitucional. E existem deputados que puderam ter pensões vitalícias pelo exercício de funções, a partir de duas legislaturas, de quatro anos cada uma. E como é do conhecimento geral, também há titulares de cargos políticos com reformas vitalícias. Uma pergunta, todavia, se impõe. Haverá razões para que os políticos se tenham estabelecido no seio da comunidade como uma casta superior?
Entretanto, Jardim Gonçalves, antigo presidente do BCP, tem uma pensão de reforma de 167.000 euros por mês. E Paulo Teixeira Pinto, que no BCP entrou em conflito com Jardim Gonçalves pela Presidência do banco, recebeu uma indemnização à cabeça de 10 milhões de euros e uma reforma vitalícia mensal de 35.000 euros. Estávamos em 2008. Paulo Teixeira Pinto tinha, então, 48 anos. E esse foi precisamente o ano em que começou a crise financeira internacional, precipitada pela falência nos Estados Unidos do banco de investimento Lehman Brothers.
Porque é que nunca passou pela cabeça dos políticos, que hoje discutem a reforma da Segurança Social, fixar um teto máximo para as pensões de reforma? Em nome da justiça e da coesão sociais, assim como da solidariedade com quem verdadeiramente precisa, teria todo o sentido que o fizessem. E por que razão uma pensão de reforma é cumulável com outras? Um limite máximo para a pensão de reforma e uma pensão única, não cumulável com outras, por certo que colocaria a Segurança Social fora do perigo da insustentabilidade.
Sim, por que razão não é feita uma lei que acabe de vez com as reformas milionárias dos banqueiros, cuja gestão levou, aliás, os seus próprios bancos à ruína, lesando uma multidão de contribuintes e empobrecendo o Estado? É bom lembrarmo-nos que em 2015, o BCP pediu ao Estado nada mais, nada menos do que 3.000 milhões de euros. Esta circunstância permite concluir que as reformas de Jardim Gonçalves e de Paulo Teixeira Pinto são pagas pelo erário público.
E poderíamos continuar a fazer o escrutínio da nossa vida democrática. Por exemplo, é sadio para a democracia termos normalizado a constituição de um Governo, que é feito na base de redes de proximidade, a ponto de nele grassarem as relações familiares?
Passaram apenas 45 anos sobre “o dia inicial inteiro e limpo”. E os cidadãos têm razões para temer o vento ruim que hoje sopra, não apenas na Europa, mas um pouco por todo o lado. Vemos aproximarem-se da boca de cena da história, é verdade, líderes populistas, seguidos por multidões, que agitam as bandeiras do nacionalismo e do patriotismo, e que nalgumas paragens misturam hossanas à fé cristã ou a Alá. Por tumultuadas águas, a comunidade humana faz hoje uma travessia, sob a ameaça crescente do racismo, da xenofobia e da intolerância, a ponto de o sonho de liberdade, ainda tão próximo, parecer afinal um sonho longínquo.
Mas não basta olhar para este vento ruim, que hoje sopra na Europa e um pouco por todo o lado. Há que interrogar, também, as condições de funcionamento da democracia. Há que interrogar a peçonha que a envenena. Há que combater a normalização da impunidade.
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