Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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Algo se quebrou...!

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

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Conta o Leitor

2014-08-02 às 06h00

Escritor Escritor

Avançava a noite lenta e sofridamente, procurando no abrigo de um abraço, que não tinha, o conforto que não sentia, Maria escutava o silêncio. Um estranho frio invadia seu corpo numa vigilância constante, desperta a qualquer ruído, ao toque de um telefone mas... nada, um completo e constrangedor silêncio!
Longa ia a noite. Tinha já esquecido como se “pedia” de tanto ter pedido ao longo de quase dois meses de sofrimento. Até ao último momento Maria acreditou. Acreditou num milagre, na ciência, na sua força lutadora, influenciada ou não por profissionais de saúde em suas escassas, ambíguas e frias explicações, mas acreditou.
Ela sempre tinha sido o elo mais forte. Mesmo na fragilidade de seus oitenta e poucos anos e com constantes problemas ósseos, conseguia impor suas vontades. Fora sempre uma lutadora. Não ela não iria despedir-se da vida “agarrada” a uma máquina, sem falar...Não, ela não, Senhor!
Mas foi. Não houve despedida. Deixou naquela noite a luta constante em que viveu grande parte de sua vida. Maria só o soube na manhã seguinte porque procurou essa informação. A mãe que tinha partido criou sozinha, três filhos; dez, sete e seis anos. Tão pequenos! Na perspectiva de lhes dar um futuro melhor procurou em Moçambique essa resposta. Contingências adversas quiseram interromper esse sonho. Anos mais tarde, com seus filhos já adultos, o regresso a Portugal, chorando o país que viram “forçados” a abandonar. Continuou trabalhando para que nada lhes faltasse. E não faltou. Na despedida de sua mãe Maria consegue colocar a máscara de uma das mais bem conseguidas representações de sua vida. Foi uma boa atriz atuando num cenário que não era o seu, representando o papel que lhe tinha sido destinado. Quebrando apenas alguns protocolos! Rompendo com algumas tradições! Não, não foi a medicação, foi ela... Não permaneceu quieta, sentada num canto esperando as condolências. Deambulou pelo recinto, agradecendo a todos com um sorriso, sua presença. Distribuiu patelas. Agradeceu algumas mensagens, até o telemóvel atendeu enquanto lhe foi possível. Não é verdade que sob efeito de medicação se fica menos desperto, menos consciente. Não. Provavelmente nossa resistência e aten-ção, se duplica. Um amigo, homeopata, tinha-lhe aconselhado o que deveria tomar em situações de grande tensão. O mesmo que aconselhava a forma de controlar sua saúde e controlar suas emoções. Teve ainda outros amigos por detrás (reikianos) que preocupados, a foram ajudando com suas orientações. Recorda a surpresa de ver uma amiga que veio de longe só para lhe dar pessoalmente um abraço. A mesma que vivenciou (via telemóvel) momentos marcantes de episódios carregados de intenso sofrimento. Recorda ainda alguns colegas de trabalho que não esperava ver por ali e tantos outros amigos que, não podendo estar presentes foram enviando suas mensagens. Outros ainda, de família, que mesmo longe ali estiveram “presentes”. E ainda aqueles que, de perto ou de longe vieram para prestar a última homenagem “aquela tia” que sempre fora “a lutadora”. Familiares, amigos, vizinhos, conhecidos... tanta gente! Comunicando a todos a hora da partida, o local do funeral, a difícil escolha da roupa de sua mãe, o choro embrulhado e contido... Por detrás da máscara esteve Maria. Sozinha em suas representações, até final! Seu olhar se fixa repetidamente naquele corpo ali, inerte, vislumbrando nele um misterioso sorriso de paz, em seu encontro com a morte. Na missa de despedida nem uma palavra para a Grande Mulher que fora sua mãe. No ritual pragmático e frio de cerimónia fúnebre, sem cânticos, sem música, apenas leituras pré definidas. Apenas e só isso.
Tentou dar o seu pequeno contributo num apelo às forças de emoções contidas. Leram, Maria e Sara (uma de suas netas) dois dos textos bíblicos que lhes colocaram à frente. Nada mais. Foi tão pouco! Partiu, levando com ela uma parte de Maria. Quem mais se irá preocupar assim?!
Quem com a frequência (incompreensível para muitos) perguntava sempre ...”e tu estás bem minha filha?” Chora, não ter sussurrado em seu ouvido o quanto ela significara em sua vida. Chora, não ter tido a coragem de lhe dizer o quanto a amava.
Chora ainda, não ter sido capaz (no momento certo) de irromper em gritos, até que a ouvissem; de ter quebrado a indiferença de comentários profissionais “é da medicação” ; de impor pela força (porque não?!) o apelo constante de voz sumida que repetia constantemente “ela não está bem” , que ninguém ouviu.
Chora, por esta finitude que a todos envolve, confrontada apenas na evidência da perda. Em cada religião e teorias filosóficas se busca algum conforto nas perdas, contudo nenhuma se mostra verdadeiramente eficaz para acalmar a dor, o sofrimento, a não ser o apelo a nós próprios buscando essas respostas. Naquele dia o chão que calcetou com estrutura sólida de mestre que o construiu, para sobre ele caminharem, seus filhos, sem quedas, terminou ali. Desabou. Ruiu. Nesse corpo alquebrado pelo sofrimento, gasto pelos anos e desgostos, sobressaía o poder marcante da força de sua presença. Nessa lucidez impressionante de suas memórias, de preocupações constantes, de apego à vida de seus filhos (não à dela) impregnada de sentido vivo, no encontro e na forma de os ajudar a serem felizes... aquela mãe partiu. Algo se quebrou em Maria... e lá ficou!

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