Fazer Pedagogia da Memória
Voz às Escolas
2025-05-21 às 06h00
Tenho a idade suficiente para poder dizer, com sentido alívio, que não sou contemporâneo do Estado Novo. Pessoalmente não sei, portanto, o que foi viver num país em que mais de 25% da população era analfabeta; em que a fome e a miséria espreitavam a cada esquina, mal disfarçadas numa sardinha e num naco de broa que haveriam de alimentar uma família inteira; em que os sapatos eram um luxo que só se usava à entrada da cidade, e apenas para não se incorrer em delito; em que sendo orgulhosamente o celeiro da europa, não passávamos disso; em que os jovens, demasiados deles ainda imberbes crianças, muitas vezes impreparados e sempre, sempre impotentes, eram enviados para o “ultramar” para combater numa guerra que nada lhes dizia e um inimigo a quem nenhum mal queriam; em que o delito de opinião era bilhete certo para o exílio, com sorte, ou para o Tarrafal, quando esta faltava; em que este texto não dependeria apenas da minha consciência, convicções e princípios, estando sujeito a escrutínio prévio e a um “lápis azul”, implacável provedor da moral e dos bons costumes de uma pátria que se queria abundante em pruridos; e em que a democracia, com todas as suas virtudes e vícios era conceito abstrato, inoportuno e demonizado, sujeita a apertado espartilho de um regime de partido único, antítese acabada da essência da própria democracia.
Nada disto vivi, felizmente. O pouco que sei chegou-me através de testemunhos que desde sempre me habituei, com gosto, a ler ou a ouvir. Mas é quanto me baste para construir inabalável aversão a toda e qualquer forma de prepotência, e defender, a todo o custo, as premissas fundamentais de qualquer estado de direito, livre e democrático. E porque estas estão, objectivamente, em risco de implosão, urge defendê-las, evocando-as não só no quotidiano, mas sobretudo na Escola, uma das grandes conquistas de Abril.
Nesses tempos, e com especial incidência no Portugal rural, a escola era, para a esmagadora parte das crianças que aí (sobre)viviam, mero conceito abstracto, e um luxo tantas vezes fora do seu alcance. Com sorte, e desde que as condições familiares o permitissem, estudava-se até à “4ª classe”, para logo depois, com 10 anos, se integrar o mercado de trabalho, de onde não mais se sairia. Os estudos “liceais”, e, ainda mais, os estudos superiores, estavam reservados a alguns (poucos) privilegiados, maioritariamente oriundos das urbes. A universalidade da Escola, assim como a igualdade de oportunidades académicas e a equidade social, hoje tidas como garantidas (que não estão!!) eram, pois, utopias que não interessavam realizar. O povo queria-se estúpido…
As coisas eram assim. Ponto. Tudo gravitava em torno de uma lógica de “castas” sociais, em que cada uma delas trazia indexada, por defeito, a boa ou a má sorte de nascer num berço de ouro ou numa cama de palha; a oportunidade de uma vida melhor ou a condenação a um calvário de miséria e provação; a dignidade de uma vida confortável e com horizontes, ou a indignidade de uma sobrevivência a pão e água, sem qualquer perspectiva de mais ou melhor…
A Escola de hoje tem que se assumir enquanto primeiro garante de que a divisão da sociedade por castas com diferentes direitos adquiridos à nascença é apenas um apontamento histórico que importa preservar para nunca mais repetir, assegurando e defendendo a igualdade de oportunidades e de tratamento a “todos, todos, todos”, independentemente da sua proveniência social ou capacidade económica.
Em tempos em que renasce, alastra e consolida – e de que forma! – o lema do “antigamente é que era bom”, a Escola deve assumir a incumbência e o dever intrínseco de rebater tal retórica cáustica, manipuladora e mentirosa, informando – nunca formatando – os seus alunos com factos, números e testemunhos de que não, antigamente não era bom.
Tempos em que a miséria, o analfabetismo, o delito de opinião e a desigualdade dominem nunca poderão ser bons. Por mais que pintem latão de ouro, será sempre latão…
18 Junho 2025
12 Junho 2025
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