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Arranque da batata

Analogias outonais

Arranque da batata

Escreve quem sabe

2024-09-07 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

«Livre não sou, que nem a própria vida mo consente. Mas a minha aguerrida teimosia é quebrar dia a dia um grilhão da corrente. Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino. E vão lá desdizer o sonho do menino que se afogou e flutua entre nenúfares de serenidade depois de ter a lua!»

Miguel Torga, 1950,
Cântico do Homem


Quando entro em setembro tenho o corpo à flor da pele. É a entrada do Outono, estação maior onde desfio as memórias que estão cravadas dentro de mim. A maior fatia encontro-a na infância, estádio com bancada cheia, povoada de nomes, pedaços de chão e cheiros.
Por estes dias, voltei a ela com a força de um menino de sorriso aberto. Arrastei os meus para um desenho obrado nos anos 80. Os traços e rabiscos mostraram uma leira de batatas, enxadas, borracha galega, bica de ovos, iscas de bacalhau, pataniscas, cebola salgada, pratos de esmalte, pão centeio, presunto, vinho e um liteiro estendido. Bucolismo à rédea solta que me abraçou como quis.
A apanha da batata no Barroso é dos quadros mais limpos que podemos ter quando queremos recuar no tempo. A terra ainda mantém o pó do orvalho. Uma textura, fina, que sacode mosquitos e moscardos e que nos faz acreditar que a pegada que deixamos irá resistir a raios e trovões. Quando a pisamos, há nela o amanho do tempo sem fim.
O lusco-fusco da ida é uma dança que o céu observa. As enxadas às costas, colos em valsa. O caminhar, com botas por engraxar, soletra cada pedra. A roupa leve, recuperada e vazada ao longo do ano, emerge como a borbulha. Tudo tem pele. Um arrepio que embala.
No terreno não há sortes. Cada um sabe ao que vai. Uns para cavar. Outros para apanhar. Se antes o homem tinha em exclusivo a enxada, hoje nem sempre acontece. A dor de lombo toca a todos e a resiliência é menos tolerada. Alguns levam luvas para não deixar lavrar as borregas nas mãos. Coisa nunca vista no passado. Não havia água e sabão que retirasse a crosta alimentada por dias seguidos a levantar a enxada. Agora há telemóveis que registam – como é exemplo a foto que ilustra este artigo – em contraponto ao imenso só gravado em cada um.
Nos meus largos anos 80 tive oportunidade de viver um tempo sem ruído. Saíamos de casa de manhã e só chegávamos com a tarde a cair. O arranque da batata é um ilustre exemplo. Era feito de Sol a Sol. Um rancho de gente que tinha cavadores afamados, por vezes vindos de aldeias vizinhas. Dias seguidos onde poucos tinham tratores. A grande maioria colocava o sustento em casa à custa da bravura de uma ou duas juntas de vacas. Havia ainda outros que tinham o burro como a grande força. As sacas variavam entre os 50 e os 100 quilos. Agora, grosso modo, são de 20. Nos animais, recordo o chiar dos carros. Quanto mais peso, mais o som ecoava pelos montes e aldeia dentro.
Dias quentes, alguns abafados, às tantas sacudidos por histórias que tinham tanto de nada como de espanto: uma cabra que pariu três cabritos; a trovoada que queimou o centeio; a chuva que surpreendeu os fardos do feno; o lume que queimou a poula; o escaravelho que não morreu na rama da batata; a vaca que não emprenhou; o boi que não medrou; o ano fraco para o cebolo e bom para a beterraba; o forno que já não coze; o rapaz que já não anda com aquela e anda com a outra; os sítios para as melhores gabelas de estrume; as leiras para esvaziar o esterco, ora na folha de cima ora na de baixo. Um corsário de palavras temperado com o “mata-bicho” estendido num canto da leira. Pausa afagada com o garrafão que passava de boca em boca. O guardanapo era o braço de cada um. Nada de copos, nem garrafas. Alguns tinham a lendária borracha galega, adquirida nos tascos da Galiza, erguidos a escassos quilómetros da fronteira. Por essa era, abundavam trilhos de contrabando, onde os burros e as candeias sobreviviam, na calada da noite, por entre caminhos murados, regatos, campos de cultivo e carvalhais centenários. No breu, fintar os carabineiros era sinal que o pão chegava à mesa.
Somos muito daquilo que recebemos. Do que ouvimos e vemos. Do que tocamos e do que nos deixamos tocar. Tive infância com campo diáfano em identidade. Não espanta que repouse muitas vezes o meu olhar no cordão que suporta tanto do que sou e valorizo.

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