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Voz aos Escritores
2025-07-04 às 06h00
As Malditas são as travestis, bruxas, disformes, diabólicas, aberrações da natureza, mulheres erradamente nascidas em corpos de homens. As Malditas são a nomeação escolhida por Camila Sosa Villada no seu livro autobiográfico que partilha do mesmo título, uma obra que me impressionou, me emocionou, que nos dá a conhecer a realidade das travestis num mundo vestido de não aceitação, um mundo que rejeita tudo o que é diferente ou foge aos padrões de uma sociedade alicerçada nos preconceitos. Nas primeiras páginas, deparamo-nos com uma cena tão triste como ternurenta, em que um grupo de travestis encontra um recém-nascido abandonado no Parque Sarmiento na cidade de Córdoba, Argentina, um bebé enjeitado chorando de fome e de frio, sujo de fezes e urina embrulhado num verde kispo andrajoso. A tia Encarna, “mãe adoptiva” das travestis, decide ficar com o menino que nomeia Brilho dos Olhos, o menino que passará a ser o ai Jesus do grupo, a quem as travestis oferecem a maternidade que biologicamente lhes está interdita. Realço esta cena pela humanidade que sustem, uma humanidade tão bela e que é enxovalhada por uma sociedade julgadora, adepta da crítica e da discriminação. Ao longo do livro, Camila Sosa Villada desfia sentimentos, seus e das travestis suas companheiras, contando outrossim as tragédias de vida e de morte da maioria em páginas impregnadas de veracidade, onde o medo de ser diferente espreita a cada esquina, medo delas e dos cidadãos, que num estranho paradoxo as procuram para o cumprimento das urgências de um corpo animal e nelas espancam as frustrações e as taras. A violência é linear a toda a obra, uma violência que também me feriu, cada violação, cada soco, cada facada, cada humilhação, são fielmente descritas pela autora que num desabafo nos relata as mágoas de infância, o alcoolismo paterno, a violência doméstica, o abandono emocional de um filho que quer ser filha, os insultos que ferem mais que socos, o poder das palavras atiradas como pedras por quem mais nos devia amar e proteger. O fascínio das Malditas pelo universo feminino sobrepõe-se ao medo da rejeição e da violência. E se de dia são obrigadas por uma sociedade acusadora e elitista a serem homens, pelas noites libertam a sua essência e são mulheres, mulheres malditas, segundo Camila, luxuriosas, pecadoras, abertas à aventura e à tentadora descoberta de outros corpos ávidos de desejo. Lantejoulas, cabeleiras, maquilhagens exuberantes, sapatos compensados de tacões altíssimos, berloques e perfumes intensos mascaram fisionomias masculinas que querem ser femininas. A invisibilidade que por um lado procuram, protegendo-se dos achincalhamentos, dos apontares de dedos, da expulsão de lojas ou outros lugares públicos, de risinhos e trejeitos incómodos, contrapõe-se ao deslumbramento eufórico, ao espalhafato sensual dessas mulheres enormes, largas de ombros, alteadas pelo calçado, pénis incomodamente entalado na roupa interior exígua, algumas de seios moldados em silicone ou óleo de avião, outras que se sujeitaram à castração e que medicamente lograram uma vagina a que chamam “flor de carne”. Por trás do colorido e do brilho esconde-se a solidão em pensões maculadas, tristes, apesar do garrido das paredes e da decoração espampanante, a mágoa feroz da não aceitação, as doenças que as vitimizam, a profunda inquietação e a depressão que conduz muitas ao suicídio, impostas outsiders que não merecem sobreviver como Deus manda, um Deus que se enganou e as moldou mulheres em corpos de homens, as atirou a um mundo que não admite a diferença, seja ela de género, raça, ou crença religiosa. Escreve Camila, “A temporada da caça começou. Todo o bairro nos acossa. Querem a matança das travestis. Que o anunciem os jornais, que o filmem os noticiários, que figure depois nos livros de História: Hoje recordamos a matança das travestis”. Mas as Malditas persistem, corpos velhos de pouca idade, desgastados pelos desgostos, o álcool que afoga o desprezo, as drogas anestesiadoras das dores e das doenças, pessoas que somente querem ser pessoas, seres de actos de bondade e altruísmo comoventes, mulheres belíssimas que me fascinam, corpos obras-de-arte, únicas, especiais, merecedoras do respeito e do acolhimento que almejam, a integração na sociedade a que pertencem e que absurda e incompreensivelmente as excluí.
11 Julho 2025
27 Junho 2025
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