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As medidas da distância

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As medidas da distância

Voz aos Escritores

2020-06-05 às 06h00

Fabíola Lopes Fabíola Lopes

Retiro a tampa do doseador com algum esforço, para o encher com o detergente da loiça. É cinzento, como cinzentos têm sido os dias para a humanidade. Quando o estado de emergência teve início fiz o mesmo gesto. Normalmente dura cerca de dois meses e pensei eu que quando tivesse necessidade de o encher novamente já estaríamos num regresso à normalidade, fosse pela descoberta de um tratamento ou de uma vacina. Fosse pela morte do vírus com o elevar das temperaturas. Fosse por outra arte mirabolante de sucesso científico. Era a força do querer, mais do que outra coisa qualquer.
Na realidade já é a terceira vez que faço este gesto desde o dia catorze de Março. Estamos mais em casa. Estamos só em casa, na realidade, com fugazes saídas para tratar de essencialidades. Lavamos muito mais as mãos, loiça e bancadas. Só não conseguimos lavar a vida da maldade e da mesquinhez que sobejam a cada esquina, desde alguns dirigentes políticos à plebe da plebe.

As notícias não são animadoras, apesar de serem positivas para o que poderiam ser no nosso país à beira-mar plantado. Há quem se aproveite dos mais frágeis para esmagar algum sopro de sobrevivência, qual George Floyd. Sem qualquer perturbação ou interrupção do sono. Falo dos recibos verdes deste país, nomeadamente dos que estão afectos às atividades culturais. O que se passou esta semana com a Casa da Música no Porto é uma vergonha nacional. Mas poderia falar de muitos outros desvalidos, desde as empregadas domésticas que viram os seus rendimentos desaparecerem, às entidades patronais que se aproveitam do contexto para desestabilizarem, despromoverem ou despedirem os seus funcionários.

Há uma verticalidade que não é para todos e a perspetiva do que podem fazer para que o mundo seja mais humano, que nem sempre quererá dizer mais justo mas não andará muito longe, não está em nenhum horizonte ao virar da esquina. Vem de dentro, criado em raízes de carinho e respeito lá atrás, muito atrás, na infância. Damos três voltas e voltamos sempre lá, a esse espaço idílico que determina que caminhos escolhemos para deixar as nossas pisadas, com rebordo mais ou menos definido e com pouco mais do que areia e terra por baixo dos calos que vamos acumulando na planta dos pés. Para poucos, cada vez menos, não haverá pele, nem carne, nem sangue de outrem. Nem lágrimas que não as nossas pelo que tivemos que despir pelo trajeto. Ou pelo que nos foi arrancado.

E entretanto um jarro brota por entre folhas verdes, enormes, numa afirmação de vida e resistência. Foi um inverno rigoroso e o frio queimou qualquer vestígio da planta que a minha comadre me ofereceu. Lembro muitas vezes o jantar último, em presença, antes deste confinamento. Hoje, um transplante de vaso, rega e um calor que me abençoou todos os poros depois, nasce a flor alilasada para me lembrar que há sempre quem resista e surpreenda contra toda a adversidade.

Raios de cor definem o regresso de alguns alunos. Esta semana, em presença, os olhos vivos, os sorrisos, as vozes e gargalhadas, alguns abraços impulsivos às pernas, impossíveis de evitar por não os conseguir prever. A compreensão, o respeito, a capacidade que as crianças têm de nos surpreenderem e serem mais adultos que muitos. As saudades que eu tinha das aulas com olhos nos olhos e a constatação de que as soluções encontradas para o contexto em que vivemos foram as possíveis, com as melhores das intensões e o empenho de professores, alunos, pais, profissionais das novas tecnologias e políticos. Foi o que permitiu um contacto e um trabalho contínuo sem perda total do resto do ano letivo. Mas não é, de forma nenhuma, uma substituição da escola real, do que nela se faz e constrói diariamente, desde o que se consegue narrar e descrever, ao que é indizível e só é significativo para quem por lá anda.
E vê. E ouve. E cresce. E sente.

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