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Braga, terça-feira

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Cartas de saudade

A responsabilidade de todos

Cartas de saudade

Voz aos Escritores

2020-02-14 às 06h00

Fabíola Lopes Fabíola Lopes

Hoje é dia de S. Valentim, tido como o padroeiro dos namorados e, por isso, o dia destes também. Tenha ele existido ou não, tenha ele celebrado casamentos às escondidas de um Imperador que só pensava num exército destemido e sem laços amorosos ou familiares, tenha ele se apaixonado pela filha do carcereiro a quem devolveu a visão e com quem trocou mensagens de amor antes de ser decapitado neste dia, é o menos relevante.
Dos olhares enlevados, dos frios na barriga, das surpresas, maiores ou menores, dos pequenos aos grandes encantamentos. Com o tempo ergueu-se um grande comércio associado a este dia que acaba por ser o oposto do que se pretende: genuinidade, entrega, dedicação, detalhe. Porque se dantes um postal com a mensagem esperada era tudo o que fazia o mundo cintilar e o corpo flutuar apesar da gravidade, hoje quase não se passa sem o investimento num presente como medida do amor que se tem pela pessoa amada. Digo quase porque, felizmente, ainda há quem saiba distinguir o essencial do acessório e, como disse Saint-Exupéry, esse é (e continuará sempre a ser) invisível aos olhos.

E a partir das mensagens, postais e cartas, faço uma viagem no tempo pelas minhas, umas mais íntimas do que outras.
Lembro-me dos dias em casa da minha avó, quando Lamaçães era uma aldeia nos arredores de Braga e as notícias escasseavam. Telemóveis e telefones vieram mais tarde, autocarros eram dois ao dia, e a estrada que atravessava campos e quintas era a ligação à entrada para a cidade que se fazia por Sta. Tecla.
O carteiro percorria as casas todas desde manhã, a entregar a correspondência, partilhar as novidades da cidade e até alguma preocupação entre as vizinhas. Muitas tinham os filhos ou os maridos longe e qualquer notícia era recebida entre o calor da ansiedade e a emoção de umas palavras de tranquilidade ou afeto. Quando se demorava um pouco mais, porque às vezes são precisas mais palavras e mais respiração, a minha avó espreitava pela janela a ver se o via dobrar a esquina da igreja. A apreensão crescia com a demora, que não traria boas notícias fosse para ela ou alguma outra comadre. Assim que o via aproximar ou o Farouk, o pastor alemão que encantou a minha infância, dava sinal, apressava-se a pôr um pano dos bons sobre a cabeceira da mesa, um copo de vinho meio cheio e a garrafa ao lado, com a companhia de um prato pequeno com broa. Com as mãos alisava o avental e compunha as melenas de cabelo que teimavam em andar ao vento e assomava no cima das escadas.

- Ó senhor Sousa, hoje já vem atrasado?
- Ai, D. Quininha, nem me diga nada. Hoje não posso demorar.
Ou porque alguém precisou de uma palavra ou que lhe lesse a correspondência ou porque as pernas já não eram as de antes e demoravam mais a resgatar o corpo do quintal para a portão ou porque a vida era só isto, o tempo que podemos dedicar aos outros quando sentimos que precisam.
- Vá, entre e sente-se um bocado a descansar as pernas e beba um copinho.
- Obrigada, mas hoje não posso. Já estou a chegar à conta.
- Homessa, não me vai fazer essa desfeita… Olhe que lhe tomo a mal. Faça o favor de entrar.

E o cordial e generoso senhor Sousa lá entrava, que não tinha outro remédio. Com mais ou menos vinho tomado, às vezes nos dias quentes iam dois copos para ajudar a resfrescar, novidades contadas e cartas entregues, o carteiro tinha um valor e uma estima hoje difícil de entender e reconhecer. E contas feitas ao que a modernidade nos trouxe, esta é uma das perdas que lastimo.
Com o marido em Angola, onde acabou por falecer, um filho na Guerra Colonial, outro em França, bem como várias sobrinhas e sobrinhos, e ainda um outro filho na Venezuela, cada notícia de vida era fonte de contentamento durante uns tempos. E a alegria do dia em que os teve a todos debaixo do olhar não é coisa que se esqueça.
Cartas de amor também as tive e tenho. Mas isso talvez fique para uma outra crónica. Hoje apeteceu-me contar este lado das cartas, de afetos, de amor, de saudade, porque nem todas as importantes se resumem às dos namorados.

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