Reciclar o Natal!
Ensino
2024-03-14 às 06h00
Estava aqui a deambular entre ideias sem decidir sobre o que escrever, quando o cheirinho das torradas me resgatou do vagueio. Pois hoje vai ser sobre pão! Mas não sobre um pão qualquer. Falarei de um pão de côdea muito rija, massa densa de cor branca-acinzentada, sabor acidulado e aroma inconfundível. O pão de massa-mãe! Trata-se de pão de fermentação lenta feito a partir de um fermento especial (a massa-velha, massa-mãe ou isco) que lhe confere toda esta identidade. Um pão que não usa fermento de padeiro industrial e em que os padeiros podemos ser todos nós. Aliás, viu-se isso na pandemia. Fechados em casa, que sufoco, o que é que não podia faltar a par do papel higiénico? O pão! E nós, que nessa altura pouco ou nada controlávamos, tivémos a necessidade de, perante tanta incerteza, provar ao nosso mundinho que “vai ficar tudo bem” e que até o pão, sustento de vida (real e metafórico), podíamos fazer. Nada de transcendente, basta-nos farinha, água, sal e fermento. E aqui é que foi o busílis da questão.
Para o pão, o fermento tem que ser biológico, não pode ser químico. Ai… Meto-me em caminhos apertados e agora tenho que fazer aqui um grande parêntesis para deixar isto bem explicadinho. Até porque anda aí uma campanha publicitária a “vender” que os seus produtos de marca branca são livres de químicos (ridículo! - toda a matéria é de origem química). Nada contra os químicos, sejam eles as pessoas ou as substâncias. O que se passa é que o termo fermento pode referir-se a dois produtos de características completamente diferentes. Por um lado, o fermento químico que é utilizado em bolos resulta da mistura de bicarbonato de sódio (uma substância alcalina também denominada base), cremor tártaro (um ácido) e amido de milho, e mantêm-se inactivo enquanto seco e não sujeito a calor. Misturado na massa e já no forno, faz os bolos crescer por libertação do dióxido de carbono (CO2) resultante da reacção entre a base e o ácido. Por outro lado, o fermento biológico usado no pão consiste em células vivas de levedura de padeiro, Saccharomyces cerevisiae, um microrganismo que faz a fermentação alcoólica (transformação de componentes de cereais em CO2 e álcool), processo que está na base da produção de pão e cerveja. A levedação da massa dá-se a temperatura amena antes da ida ao forno, já que sendo a levedura um ser vivo, a cozedura dita a “paz à sua alma”. Feita a ressalva, voltemos ao assunto. Durante a pandemia, a corrida ao fermento de padeiro limpou as prateleiras e nem miragem dele se encontrava, fosse fresco, congelado ou desidratado. “Deus dá o pão, mas não amassa a farinha", já diz o ditado. E neste caso, até o fermento foi “o pão que o diabo amassou”. Não nos dando por vencidos, eu por mim falo, arregaçámos mangas e criámos o fermento. Na verdade, mais não fizémos do que resgatar a tradição que está na origem do processo de produção de pão. Ora vamos lá ver em que consiste.
Uma mistura de farinha e água, ao ar, após algum tempo (geralmente 4 a 7 dias) ganha vida evidente no seu aspecto esponjoso e borbulhante. Geração espontânea? Claro que não! Já desde Pasteur, no século XIX, sabemos que a vida só pode surgir de vida pré-existente. E, ainda assim, algo de mágico está a acontecer. Associada à farinha há toda uma comunidade de microrganismos naturais desse ambiente (flora indígena ou selvagem) que se mantém inactiva enquanto as condições não são as adequadas. Mas havendo água tudo muda de figura (o mesmo acontece quando se esmaga o bago de uva e o sumo fermenta em vinho). E mais! A diversidade/ quantidade desses microrganismos varia com a origem e o tipo de farinha em questão, à partida tanto mais exuberante, quanto menos processada for a matéria-prima. Esta flora microbiana selvagem, ao consumir os nutrientes da farinha, produz CO2, álcool e um conjunto de ácidos orgânicos, num processo de fermentação muito mais rico e complexo do que apenas a fermentação alcoólica de Saccharomyces cerevisiae. A fermentação lenta, levada a cabo por um isco original deste tipo, confere ao pão, tal como acontece com os vinhos e cervejas, características organolépticas responsáveis pela sua assinatura e identidade (cada pão caseiro é único!). E ainda, faz com que o pão dure mais tempo já que o ácido acético (ácido presente no vinagre), um dos produtos da fermentação lenta, é um conservante alimentar que contribui para a inibição do crescimento de bolores. Adicionalmente, o pão de fermentação lenta também traz uma série de vantagens em termos de saúde quando comparado com o pão industrial.
Desde já apresenta maior digestibilidade (não causa desconforto por não ser fermentado pela flora intestinal); é mais rico do ponto de vista nutricional (por exemplo, aumenta a biodisponibilidade de minerais como o magnésio e o zinco presentes nos cereais); promove a saúde intestinal e a sensação de saciedade pelo seu maior teor em fibra; ajuda a reduzir a pressão arterial e o risco de hipertensão; fortalece o sistema imunitário e previne os picos de açúcar. Tudo isto são características do pão feito de massa-mãe. E por falar em mãe... Com três letrinhas apenas / Se escreve a palavra pão / É das palavras pequenas / A que enche estômago e coração.
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