Correio do Minho

Braga, quinta-feira

- +

Contas da minha aldeia: o S. Justo

Os bobos

Conta o Leitor

2018-07-05 às 06h00

Escritor Escritor

Autor: Luiz Saragoça

Uma história do Carnaval, tal como me foi contada.
O tempo corria devagar em Vales de Cima. Os dias começavam a crescer, as noites estavam a mingar e as veladas a acabar.
O S. Justo, era um Santo venerado na aldeia de Vales de Baixo, onde tinha um altar só para ele e muitos devotos e devotas.
Contava-se que o Santo tinha sido desviado da igreja da povoação espanhola de S. Marcial del Rio, há longos anos, e ali permanecia contrariado.
O Santo, no seu pedestal, tornava-se pouco visível, dada a sua pequenez e a imensidão do altar. No entanto, a sua veneração era inversamente proporcional ao seu tamanho - pouco mais de um palmo bem medido.
Os rapazes de Vales de Cima estavam enfadados de tanta monotonia... - os dias davam lugar às noites e as noites aos dias, e nada acontecia por aquelas bandas. Reunidos na ronda, os rapazes da aldeia planearam um sacrilégio: ir a Vales de Baixo descer S. Justo do seu faustoso pedestal e mostrar-lhe a realidade mundana.
O domingo gordo, ante-véspera do Entrudo, era o dia perfeito!
O Tonho, com parentes em Vales de Baixo e assíduo nas suas ruelas, ofereceu-se logo para ser o autor da proeza.
- Deixai o assunto comigo! – Exclamou, radiante, o Tonho.
- Já tenho um plano - disse aos amigos.
O domingo tinha amanhecido limpo e claro e o Tonho, no seu fato domingueiro, escarranchado na burra, foi visitar os seus parentes, congeminando, durante o percurso, como descer o Santico do altar sem ninguém se aperceber.
Os sinos repenicavam, anunciando o início do acto religioso. O Tonho prendeu a jumenta no cabanal dos parentes e, devoto como era, também ele se dirigiu à igreja e plantou-se em frente ao altar do Santo.
Terminada a missa, o Tonho, como quem não quer a coisa, muito devoto, ficou hirto em frente do Santo a fitá-lo com o seu olhar penetrante. O Santo também o olhava descon- fiado!
Estava a igreja vazia, com o cura a mudar as religiosas vestes, e o Tonho, com um último olhar perscrutante, percorreu os cantos da igreja inspeccionando todos os Santos.
De seguida, levantou a mão e, com os cinco dedos, abraçou o Santico que ainda tentou, sem sucesso, agarrar-se ao altar. Porém, não conseguiu aguentar-se por muito tempo e, numa das investidas, caiu na mão do Tonho que, sorrateiramente, o meteu no bolso da samarra.
- Já está!- Disse para os seus botões.
Cumprida a missão, saiu da igreja, esgueirando-se por entre as sombras, sem que ninguém o tivesse visto, pegou na jumenta e regressou a casa.
Ninguém deu por nada!
O Santo foi colocado, com todo o respeito e carinho, no seu provisório altar: a pipa mais elegante da adega do Tonho.
Depois dos casamentos entrudeiros e dos dotes distribuídos, com a boca e a garganta secas, era hora de regá-las e de porem o Santo à prova.
A primeira adega visitada foi a do Tonho, onde o Santo já aguardava impaciente. O Santo, no seu novo pedestal, observava o corrupio do precioso líquido que ia escorrendo pelas gargantas ávidas dos rapazes.
- Este é pelo S. Justo! - Gritava o João Piorno e todos, à uma, elevavam os copos ao sobrado.
A preciosa pinga escorria agora pela garganta, refrescando as ressequidas goelas e caindo no nos adentros dos rapazes.
A procissão continuou, … - o Santo à frente, nas mãos do Tonho, e os rapazes atrás.
A adega do Zé Escaleira era mesmo ao lado. Entraram e o Santo foi, respeitosamente, colocado na pipa mais alta, mesmo em frente ao presunto que aguardava pendurado num caibro.
O Zé desceu o presunto e, com a palaçoula, cortou umas lascas e colocou-as num prato de porcelana esboucelado. Ainda ofereceu ao Santo mas, como este se reservou ao silêncio, meteu-a na sua própria boca.
- Se não queres Tu, trinco eu.
- Depois não digas que não te oferecemos! - Gracejava.
Todos comeram e beberam sob o olhar atento do Santo, que nada dizia.
- O Santo está a rir para nós! - Exclamou o Seixas.
- Não estou a gostar! … e o Santo se calhar também não!
A ronda continuou, percorrendo mais algumas adegas dos fregueses, sempre com o Santo como protector.
Eram já altas horas quando todos recolheram às suas casas, excepto o Santo que regressou à adega do Tonho.
Os dias seguintes foram terríveis…
O Santo, farto da pasmaceira, decidiu que era a sua vez de divertir-se e, de uma só vez, envinagrou o vinho de todas as adegas por onde tinha passado.
A notícia correu célere. Os foliões ficaram aflitos e culparam logo o Santo, está bem de ver:
- Foi uma vingança do Santo!
- Temos de o devolver à Sua divina proveniência, a ver se ainda salvamos o vinho.
Mas como?! …se era a Maria Estevinha que tinha a chave da igreja.
- Se o fui buscar, também o vou levar! - Propôs o Tonho.
- Vamos esperar pelo domingo e o Santo será restituído ao seu altar. – Acrescentou.
No domingo seguinte, a Maria Estevinha, zeladora e devota do Santo, foi a primeira a entrar na igreja. Olhando para o altar ficou extasiada e esbracejando gritava - aqui del rei que roubaram o S. Justo.
O padre ainda vinha no adro e já a notícia ecoava nos seus ouvidos. Perante a gravidade da ocorrência, excomungou, logo ali, o atrevido pecador, enviando-o para as profundezas do inferno!
A notícia correu célere por toda a povoação.
- Roubaram o Santo! Roubaram o S. Justo!
Mas, o Santo estava perto e o Tonho matutava na manha de o devolver à Santa proveniência. Entrou na igreja, já composta, colocou-se em frente ao altar e ali permaneceu com a mão no bolso, esperando a melhor altura para recolocar o Santo no seu devido lugar.
Estava a missa no momento em que todos se ajoelham e o Santíssimo é elevado aos céus. Todos amarram a cabeça e, olhos no chão, pedem perdão por todos os seus pecados. Todos não! O Tonho estava de olho no Santo, no altar e no padre.
- É agora! - Pensou para consigo.
Estava o cura de costas para o rebanho e todos os devotos ajoelhados, de olhos no chão, e o Tonho, descontraidamente, retirou o Santo do bolso, recolocou-O no seu pedestal e ajoelhou deitando-lhe um último olhar. Ninguém deu conta que o Santo já estava no seu devido lugar. Qual filho pródigo forçado. Tinha regressado à sua Santa casa.
O Tonho, aproveitando a altura da comunhão, sorrateiramente, depois de uma genuflexão saiu apressado da igreja e, sem falas nem meias falas com parentes e afins, regressou a casa.
A Maria Estevinha, ainda combalida, ia a dirigir-se ao padre, no sentido de tomar providências quanto ao desaparecimento do Santo, quando reparou que este já lhe estava a sorrir no seu altar. Ainda fechou e abriu os olhos, para desenganar a vista já cansada, porém, constatou que tudo estava no seu devido lugar, incluindo o Santo.
Ficou intrigada…
- Senhor padre, o Santo já está no altar!
- Milagre! Milagre! - Gritava a Estevinha.
O Santo sorria e, nesse instante, como que por milagre, ou milagre mesmo, todo o vinho envinagrado ganhou novas cores e …, ficou uma pinga como nunca se vira.

Deixa o teu comentário

Últimas Conta o Leitor

21 Agosto 2022

O tio Pepe tem 50 anos

Usamos cookies para melhorar a experiência de navegação no nosso website. Ao continuar está a aceitar a política de cookies.

Registe-se ou faça login Seta perfil

Com a sessão iniciada poderá fazer download do jornal e poderá escolher a frequência com que recebe a nossa newsletter.




A 1ª página é sua personalize-a Seta menu

Escolha as categorias que farão parte da sua página inicial.

Continuará a ver as manchetes com maior destaque.

Bem-vindo ao Correio do Minho
Permita anúncios no nosso website

Parece que está a utilizar um bloqueador de anúncios.
Utilizamos a publicidade para ajudar a financiar o nosso website.

Permitir anúncios na Antena Minho