Entre a vergonha e o medo
Ideias
2022-03-08 às 06h00
Parece que o que mais tem faltado nesta crise humanitária em que se tornou a invasão belicista da Ucrânia pela Rússia é justamente o bom-senso e a utilização mediana das mais básicas funções cerebrais.
Este é um conflito profundamente irracional, por muito que nos tentem vender a ideia do génio de Putin ou de outros estrategas de fina craveira que habitam o politburo iliberal e ultracapitalista de Moscovo.
É irracional pelo momento, logo após (ou ainda durante) uma crise pandémica que consumiu boa parte da energia e economia mundial, mobilizando muito do melhor e, por vezes, do pior que a humanidade tem para resolver um problema de dimensões globais.
É irracional porque os riscos geoestratégicos que a Rússia invoca para justificar a invasão têm muito menos razão de ser hoje do que em 2008 ou 2014, uma vez que o território da Ucrânia já se encontra profusamente retalhado e nas mãos da própria Rússia ou de forças apoiadas por ela. Da Crimeia a Donetsk, a supremacia russa era tão incontestada há duas semanas como é hoje, se bem que nada incontroversa.
É irracional porque assenta em pressupostos de aprofundamentos de alianças a ocidente que claramente não se materializaram nem estavam próximas de se materializar. Nem NATO, nem UE eram horizontes realistas de grupos abertos à entrada da Ucrânia.
E é tão irracional que, como diria Macron, “bouleversou” os objetivos estratégicos russos, de tal forma que parece hoje mais improvável do que no começo do conflito o atingir de qualquer dos intentos de Putin.
E mais irracional é porque ninguém de meridiano bom senso contemplava sequer a hipótese de uma revisitação da guerra, da barbárie, da violência e da mais negra faceta da nossa espécie no continente que mais explorou e conhece essas tenebrosas desumanidades.
O êxodo e fuga massivos de população a que assistimos e a brutal destruição de habitações e infraestruturas públicas e privadas de relevo são o vivo testemunho do sucesso falido da guerra, mas também da falência triunfal da diplomacia.
Estamos presos entre o ímpeto da ação espoletado pelo choque das imagens das mortes e migrações forçadas de famílias inteiras e o realismo imobilista das sanções administrativas e burocráticas impostas, apresentadas como se de equivalentes respostas se tratassem. O mundo parece uma alcateia temível, com os caninos afiados e capazes de dilacerar o urso russo, mas fielmente acorrentada a uma casota de papel. Triste figura a das testemunhas raivosas que assistem atormentadas à voragem paciente e imperturbada do carnívoro eslavo.
Ladrar é intimidatório e morder as orelhas pode ser doloroso, mas todos sabemos que a única opção de verdadeira retaliação desencadearia uma sucessão de eventos que ninguém ousa arriscar.
O passado da Europa torna-a presentemente refém de um receio justificado de repetir a história.
Apesar de tudo, vai-se ouvindo, a Ucrânia é vista como um país mais próximo da Rússia do que da União Europeia (e assim é tradicionalmente). Apesar de tudo, dizem-nos, a Ucrânia até tem dado boa réplica e aguentado galhardamente as investidas russas. Apesar de tudo, a isso assistimos, os refugiados têm sido acolhidos com incessante e incondicional solidariedade. Mas apesar de tudo, a guerra persiste e o número de mortos cresce.
Atualmente os únicos que certamente perderam a guerra foram os ucranianos. Os desapossados da vida, dos seus bens materiais, das suas carreiras, da sua comunidades, do seu país.
Perdedores são também os russos, a quem ninguém perguntou nada e parecem completamente irrelevantes para decidir do que que quer que seja sobre o destino do seu próprio país. Entre os que perdem a vida na frente de guerra, os que corajosamente protestam contra um regime autoritário que nem pestaneja quando é chamado a encarcerar qualquer dissonância e os que serão impactados pela miséria económica, o futuro é negro para onde quer que olhem. Se a Rússia vencer a guerra, perderá a mais ténue réstia de revitalizar a economia. Se a perder, será lançada numa profunda crise interna de poder e relevância mundial.
É fundamental que nós, europeus, sejamos os primeiros a não relativizar o que se passa na Ucrânia. As imagens violentas e de separação familiar não podem tornar-se no novo normal.
A repetição infindável dos avanços e recuos militares começarão brevemente a causar a famosa fadiga informativa que levará a que os noticiários comecem a dedicar menos tempo e relevo ao que por lá se passa. As imagens de prédios destruídos e do lodaçal do campo de batalha, a que nos habituamos a assistir na guerra dos Balcãs, não podem voltar a enfadar-nos, imunizando-nos contra o terror. Ao mesmo tempo, as redes sociais e a partilha desenfreada de imagens e informações aumentam paradoxalmente o risco de saturação e de insensibilidade à dor e sofrimento alheio.
Por isso, combater a indiferença será tão importante como combater o invasor. A humanidade não pode aceitar que o que separa o bem e o mal se torne indistinto por mero efeito do decurso do tempo.
13 Junho 2025
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