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Conta o Leitor

2013-08-11 às 06h00

Escritor Escritor

MARIA HELENA AMARO

Abri a janela. Silêncio morno. O Sol inundava um lado da rua estreita de casas esguias e cinzentas, projetando no passeio fronteiriço as sombras disfarçadas das mais afortunadas.
Na casa da esquina, uma gaiola pintada de verde fazia prisioneiro o mais taciturno dos melros apanhados pelo rapazio do bairro, na última Primavera.
À porta da taberna  duas mulheres gordas e anafadas, possivelmente cheirando a peixe fresco, discutiam com grandes gestos o preço do último lote.
Zaragateiras. Espalhafatozas. Rudes como penedos. Que a vida é dura... Que o mar é rico mas cruel... 
Um gato esquelético, de focinho delgado e olhar melancólico, roçava-se lentamente no lampião da direita. Toda a rua tresandava a peixe frito, a vinho entornado. Por cima dos telhados, onde a erva crescia pela graça de Deus, o céu era transparente. E extenso. Como um lago de seda rendilhada.
Nem retângulo de azul, lá para os lados da praça, erguia-se uma antena de televisão pintada a oiro e prata.
Vida quotidiana. Calor e poeira. Lassidão. Rotina. Casas estreitas e sujas. Peixe frito e vinho entornado. E aquela antena de televisão a gritar ao bairro todo os moldes dourados de novo rico...
Debaixo da minha janela, o Manel havia-se sentado, de pernas estendidas para o Sol... O Manel é louco, sabem? Sim, louco. E mau... às vezes. Quando lhe puxam pela língua...
As mulheres do peixe desataram-se e sumiram-se na cangosta lateral, uma atrás da outra, dando às ancas e arrastando os socos na calçada incerta. O dono da gaiola retirou-a, do prego...
O sol subiu mais alto, para os lados do mar, mas o Manel, indiferente, ficou de pernas estendidas a contar as pedras da rua...
- Um...dois...três... Um... dois... três...  
Na janela defronte surgiu um rosto de homem.
- Oh ! Manéle !
- !!!
- Eh ! Manéle ! ...
- ???
- Eh ! Manéle !...
- Qu'é quéris ?
- Nada...
- Então ... (uma praga).
Uma gargalhada enorme e chistosa e a janela fechou-se novamente com ruído... Encolhi-me toda.
O Manel voltou de novo à conta:
- Um... dois... três...
Uma criada veio sacudir o tapete mesmo por cima dele.
- Sai Manéle !
- Siri, não...
- Sai Manéle !
- Bai... (outra praga).
A rapariga riu, retribui-lhe a saudação e voltou a sacudir o tapete com mais entusiasmo... Olhou a rua, de cima a baixo, dirigiu-me o mais untuoso dos sorrisos e recolheu-se anafada. O homem da taberna encostou-se à vitrina...
- Queres um copo, Manéle !
- Como, sim.
E voltou à conta: Um... dois... três...
- Três, não Manéle !
- Bai... (outra praga).
Aquilo mexeu comigo. Voltei a encolher-me. O Manéle deixou de contar e caiu num mutismo patético.
O homem da taberna desistiu da troça e desapareceu por trás do balcão.
Desenhou-se na nesga de sol da rua lateral o vulto dum rapaz. Depois surgiu assobiando, vestido de ganga parda.
Deu com o tolo e parou olhando:
- Olá Manéle !
- Olá...
- Istá sóle, Manéle !
- Instá...
- Quéris uma pêra ?
- Quereri, quéro...
- Pega lá...
Atirou-lhe o fruto. Grande e acastanhado. Manel segurou-o no ar com ambas as mãos...
- É bom, Manéle !
- Bom...
E os dentes trincavam raivosamente a pera suculenta... O rapaz ria. E só quando o ouvi rir alto e mirei bem de frente é que o reconheci. Foi como se uma onda de emoção me saltasse por cima e me deixasse submersa.
Pequeno... Delgado.... Claro de cabeça e rosto... Era ele, o Alberto ! Quinze anos, talvez. É que...  O Alberto foi meu aluno... Como se fosse possível esquecer o 1.º ano que lecionei !...
Pensava tão mal dele ! É que... pensava realmente que, quando ele saísse da Escola, seria como os outros grandalhões que correm atrás do Manel proferindo tolices... Quantas vezes o avistei de calças arregaçadas entre o lodo, fisgando as gaivotas! Quantas vezes o adivinhei trepando às árvores para roubar os ninhos ! E tinha pena, muita pena. Que as crianças constroem o Mundo... E o Mundo precisa de Amor e crianças boas... De crianças boas, transformadas más nestes bairros de vinho entornado e peixe frito...
     A criada e o tapete... O homem da taberna... O rosto da janela fronteiriça... E sobretudo isso que me feria e me fez encolher perplexa e irritada, no vão da janela, aquela pera oferecida ao Manel pelo Alberto, um gesto de carícia disfarçada, entrou-me na alma como o repicar dum sino de cristal...
- É bom, Manéle ?
- Bom !
- Como se dizes ?
- Bom ! ô... ô... ôbrigado !
- Intão, adeus !
- Adeus !
O rapazote voltou a desaparecer na ruela estreita. O Manel ergueu-se, arrastou-se até ao fim da rua a cantarolar em surdina...
O homem da taberna abriu a telefonia no máximo, para ouvir o relato do futebol...
O sol desapareceu por cima dos telhados... A rua tornou-se em penumbra... A antena da televisão deixou de brilhar pintada de oiro e prata...
-Gu...ô...Lo de... ! ! !
O cheiro a peixe frito acentuou-se. Procurei por cima das casas cinzentas um telhado de azul, onde pudesse mergulhar os olhos e encher-me de Infinito. Aos meus olhos como num filme vivo:
- É bom Manéle ?
- Bom...
Oh! Que ser-se professora de crianças más (não há crianças más, Deus Meu!) é maravilhoso !
E descobrir que elas não são realmente más é divino !
É que... Eu vi o Alberto dar a pera ao «Manéle». E... Toda eu sorri para o Azul!
Como podem nascer lírios nesta lama quotidiana ?
Fechei a janela.

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