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Das Lantejoulas

Entre a vergonha e o medo

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Das Lantejoulas

Escreve quem sabe

2024-06-04 às 06h00

Analisa Candeias Analisa Candeias

Desde criança que oiço dizer que o tempo mexe connosco. Talvez fosse sabedoria popular, ou relatos de experiências de vida, mas, de facto, temos assistido a uma certa instabilidade social em paralelo à instabilidade das condições climatéricas que nos vão rodeando. Será que tudo está instável e tem caraterísticas de imprevisibilidade? O que nos mantém seguros nesta vida que vamos vivendo? Afinal, onde se encontram os nossos portos seguros e os nossos heróis?
A verdade é que temos, em geral, dificuldade em confiar. No tempo, na vida, nos outros. Dificuldade em ouvir, dificuldade em escutar, dificuldade em estar. Penso que nos últimos tempos estas dificuldades têm sido mais agravadas, não sei bem se pelas ideias supérfluas e fúteis que nos circundam, ou se pela desilusão que se tem instalado. Não sei bem se vamos vivendo o dia-a-dia ou se é o dia-a-dia que se vai impondo em nós.
Também tenho ouvido dizer que tudo é relativo, tudo depende. Pois, se tudo for relativo, então as estruturas que nos seguram enquanto comunidade podem começar a oscilar, deixando de ser confiáveis. Efetivamente, se tudo é relativo, então dificilmente conseguiremos ter objetivos e planos de vida concretos, e a aleatoriedade pode tomar conta dos nossos caminhos pessoais e coletivos. Será isto um risco? E será que o reconhecemos como tal? Talvez sim e talvez não, respetivamente, em especial porque o quotidiano tem assumido uma tal celeridade que não tem existido espaço para uma certa vivência mais vagarosa e ponderada, para uma certa reflexão. Quase que vivemos em modo de «atividade contínua», num mecanismo automático que nos tem deixado poucas possibilidades de revisão das nossas ações.
Achei interessante como um concerto de uma cantora norte-americana tenha gerado tanta polémica nas últimas semanas. Foram horas de entrevistas com os fãs, imagens sem fim relativas aos preparativos dos palcos, códigos de vestimentas que incluíram lantejoulas cintilantes e, mais que tudo, toda uma publicidade que, se não foi eficaz, pugnou pelo cansaço. Fiquei um pouco surpreendida com toda esta espécie de obsessão, questionando-me (e aos que me rodeavam) se esta era a heroína do mundo da atualidade. Afinal, é apenas uma cantora, trabalhadora e estratega, é certo, contudo que se vem assumindo quase como uma figura mística no panorama da sociedade atual. No fundo, a grande questão foi: qual foi o imenso ato heroico que a jovem apresentou? Qual foi aquele ato que coloca todos em suspensão e a todos motiva para serem melhores?
Assumo a minha ignorância perante esse assunto, considerando que sim, que talvez tenha acontecido alguma coisa de essencial que tivesse colocado esta pessoa como a grande heroína do dia – ou das semanas, no nosso caso português. Sigo atentamente as redes sociais e, ler continuamente que «gente que é gente vai ao concerto da Taylor Swift», deixa-me algo deprimida. Primeiro porque quem lê isto e deseja realmente ir, sem possibilidade financeira para tal, pode seguramente pensar que não é «gente» – o que cria uma insegurança e um abalo na autoestima, no mínimo; segundo, porque me surpreende que o significado de «ser gente» se tenha vindo a reduzir à presença num simples concerto – com provas mais que provadas através de selfies e stories. Claro que se entende uma certa euforia dos jovens, em particular porque todos passámos por essas fases da identificação com os pares (ou vamos passar), porém, fico deveras surpreendida com a redução tão severa do significado, tão precioso, daquilo que é o sentido da vida. Será que isto também não é prejudicial à saúde?
E, de facto, voltamos ao início, à instabilidade de que falei. Onde procuramos os nossos heróis? As nossas figuras de referência? Será que os nossos jovens querem todos ser Taylor Swift? Na verdade, considero que esta é uma reflexão que a sociedade deve ir mantendo em lume brando, de maneira que se consigam dar rumos a certas tendências e certas situações. Claro está que não há mal nenhum em ir a concertos, mas, pelo menos, que se aprendam quais são as músicas do artista que vamos ver.
Não, não «somos todos Taylor Swift», ao contrário do que nos quiseram impor há umas semanas atrás. Da minha parte, mantenho-me como Analisa Candeias, que bastante trabalho me dá, e sempre em busca dos heróis que, realmente, fizeram das suas vidas algo que vale mesmo a pena conhecer. Sobre lantejoulas nada tenho a acrescentar, embora as use com alguma frequência – e reconhecendo que são difíceis de manter.
Sugiro que todos nos esforcemos por uma maior atenção em relação ao que realmente interessa e que deixemos a Taylor apenas para certas obsessões, em horas (muito) vagas.

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