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Conta o Leitor

2011-08-11 às 06h00

Escritor Escritor

Por Graça Santos

Chegou o Verão. O mês de Agosto arrivista traz no ventre uma fornada de luso- descendentes europeus que fizeram doutras paragens a sua “terra”, mas que (e apesar de tudo) regressam saudosos da família - desconhecida das últimas gerações, e desejosos de degustar o sol e o mar.
Quiçá devido à crise (ou para se aproveitar dela) as férias estivais em Portugal estão mais povoadas de emigrantes portugueses, segundo parece à avaliação corrente, medida a olhómetro-não-científico.
E foi nesta onda de regresso às origens, agora que Portugal passou a estar na boca do mundo (até na do Presidente Americano) que a Família Sem Nome, de luso-descendentes última geração, resolveu dar uma de “chique a valer”, como a personagem do Eça e veio, em bloco, visitar Portugal, a terras dos seus antepassados. Por que isto de até o Presidente Obama nomear Portugal e eles nem sequer o conhecerem não ficava bem para a sua imagem de novo-riquismo.
Instalados em catadupa na maison dos familiares, a segunda, terceira e quarta geração de portugueses com dupla nacionalidade (arriscaria classificá-la em tripla, ou múltipla nacionalidade, devido à facilidade com que os portugueses se adaptam a outros povos e culturas), mobilizaram-se para o grande encontro da família, aprazado a um sábado, de forma a gerar um consenso alargado de participação, porque nem todos os familiares residentes estavam de férias ou no desemprego. Afinal ainda há quem trabalhe neste país!
O local escolhido foi um espaço ao ar livre, junto a uma casa de campo emprestada à família, algures no Gerês, nome genérico, já que este é um nome sonante, registado nas cartas turísticas. A forma mais fácil de proporcionar o convívio e alimento do regimento foi a de piquenique, onde cada pequeno núcleo familiar colaborava com a sua parte no repasto, previamente acordado.
Na data acertada, deslocaram-se as diversas células, nas voitures particulares. Numa seguia um casal de jovens pais, terceira geração, com o seu bebé envolto na panóplia de adereços que ocupavam três quartos do espaço da viatura. Noutra seguiam os avós do bebé (segunda geração), mais os restantes filhos não aparelhados. Noutra primos e tios. Noutra primos e tios. Noutra primos e tios, …
A hora de chegada dos diversos veículos ao local do encontro variou muito, havendo mesmo diferenças superiores a duas horas entre eles. A causa dum leque tão alargado na diferença horária à chegada deveu-se, na generalidade, à idade dos primos. Se eram crianças chegavam a horas. Se eram adolescentes ou adultos chegavam atrasados porque ou fizeram uma directa sem sono, indo da discoteca para o convívio, ou estavam a ressacar da noitada anterior, tornando-se-lhes difícil o levantar sem prestar o devido culto ao senhor do sono (a noite de sexta é imperdível na cultura da juventude actual!). Outra razão foi o desconhecimento do percurso até chegar ao local combinado porque o Portugal profundo - equivalente a dizer: montanha, campo, meio rural - não fazia parte da cultura geográfica dos luso-descendentes, que também não sabiam grafar o nome do local em português no GPS (aprender a língua dos seus humildes ascendentes não lhes havia parecido suficientemente chique) e como no telemóvel não tinham registado o contacto dos parentes recém-conhecidos, lá foram chegando a conta-gotas, com a ajuda de muitas “apreguntadelas” ao transeuntes locais. Note bem, até por aqui se vê que eles não eram plenamente portugueses, caso contrário saberiam que o uso do telemóvel é imprescindível na vida quotidiana, ou não seja ele o Objecto n.º 1 no Top das suas referências!



Passadas, sensivelmente, duas horas e meia da hora aprazada, a comitiva da Família Sem Nome estava, finalmente, completa. Até o tio Nel, único representante da primeira geração, compareceu à chamada, apesar de velho, cansado e desarranjado. A sua contribuição para a festa consistiu em levar umas dezenas de figos colhidos no seu quintal, transportados, copiosamente, dentro de uma caixa de sapatos e embalados entre folhas de figueira. Cheiravam que era um regalo! Porém, o sonho de fazer o reconhecimento ecológico do “Gerês”, tirar a foto para postar nas redes sociais (ideia muito na Moda) tinha-se desvanecido. Agora urgia acender as brasas e preparar o repasto para uma multidão esfomeada que, apesar do esforço, nem com mira telescópica conseguiria vislumbrar um qualquer comedouro nas redondezas.
As mulheres da segunda geração davam o seu melhor na preparação dos pratos, das saladas, do pão, das entradas; os respectivos irmãos e maridos tratavam das bebidas ou choravam com o fumo, enquanto cuidavam do churrasco. Os jovens, esses esperavam impacientes - isto tudo era uma seca. Pouco a pouco lá foram convivendo uns com os outros numa miscelânea de língua que nem era português, nem francês, conseguindo apenas, estabelecer parca comunicação com monossílabos da barbárie inglesa.
O bebé chorava, os pais procuravam organizar a panóplia de adereços para o saciar, o que, finalmente, aconteceu. O bebé adormeceu, mas por pouco tempo. Foi ferrado por um insecto, gerando confusão, drama, desentendimento entre pais e avós:
- Já sabia que isto ia ser uma …. (recuso-me a fazer a transcrição e a tradução), disse o pai da criança.
Inacreditável, pensei. Naquela enchente de apetrechos não havia repelente de insectos! Porém, o recurso à experiência dos mais velhos, água fresca e algum afago da criança nos seios avantajados da avó sanaram o problema.
Com o bebé a dormir e uma fome de lobo entre os comensais, a refeição decorreu em grande animação. No final, os mais cansados eram os jovens que nem o seu prato descartável retiraram da mesa para o lixo, movendo-se, apenas, para realizarem uma sesta improvisada na erva fresca.
Depois da arrumação do espaço, as mulheres e as crianças foram fazer um pequeno passeio pedestre para observar a natureza circundante e ajudar na digestão dos doces, cremosos e apetitosos, que haviam sido compradas no hipermercado da cidade, pois o adágio popular “gordura é formosura” já há muito que está demodé.
Os homens organizaram-se em jogos de fito e de sueca.

Por momentos, a paz reinou no Gerês. As folhas baloiçaram-se na brisa fresca, os pássaros cantaram, as formigas saíram da lura, a água correu voluptuosamente.
Eis se não quando, acordaram os jovens, tal qual ursos acabados de despertar do sono hibernal. Cheios de energia e de fome atacaram os restos da mesa e avançaram sobre as “surpresas” do lanche. Depois, como estava calor e naquela seca nem havia piscina, começaram a molhar-se uns aos outros, selvaticamente, com as mangueiras de rega do jardim.
- Que cena, meu! Agora vamos nus p`ra casa!
- Não só nós! Borrifa também o tio Chico, o meu pai, o teu, … Ah! Ah!...
Nesta guerra sem tréguas ressalta o pormenor interessante: na falta de melhor meio bélico, até o biberão da água do bebé serviu, ao pai da criança, como arma de defesa e de ataque para esguichar os adversários!


Não demorou muito e acabaram-se os jogos. As cartas da sueca encharcadas, nem deram para ver as “renúncias” da equipa ganhadora! Os homens, velhos e novos, molhados e sem dignidade, acabrunhados, insatisfeitos. Os jovens riam como parvos em asilo de retardados mentais.

Chegaram as mulheres e as crianças! De olhares espantados e interrogativos não percebiam que hecatombe acontecera ali. Paisagem paradisíaca infectada com seres improváveis naquele habitat. Pediram explicações e lá vão os homens da segunda geração desculpabilizar os da terceira, na tentativa de impedir o descambar do Encontro da Família Sem Nome. As mulheres compreenderam, perdoaram, fizeram um sorriso amarelo e decidiram:
- Vamos lá lanchar, com o calor que está a roupa seca e fica tudo bem outra vez!

Logo que começaram a pôr a mesa notaram o assalto às reservas comestíveis.
- Paciência, se comeram já o lá têm - pensaram!
Mas, e o melão, o melão “casca de carvalho” do tio Quim, a surpresa do tio Quim?! Procuraram vertiginosamente por todo o lado e repararam que tinha sido reduzido a cascas, na saca do lixo. Cascas bem rapadas, entenda-se. Sinal de que teria sido uma peça excelente! O tio Quim quando percebeu o que aconteceu já não conseguiu deglutir mais nenhum disparate. Considerou este acto uma afronta à dignidade da Família Sem Nome e abandonou, de imediato, o encontro:
- Encontros com esta família, nunca mais!
Sim, isto porque abrir um melão casca de carvalho sem que a família estivesse toda presente é uma falta de respeito sem precedentes, é o equivalente a comer sozinho a moela de um pica no chão ou o bucho de porco numa matança, sem partilhar com os restantes membros familiares. Um desrespeito muito superior a dez banhos de água gelada por cima da roupa.

Com este gesto, os jovens inconsequentes destronaram a honra da Família Sem Nome e o sonho de um primeiro Encontro continuado para todo o sempre. Perdeu-se a ligação do passado com o presente, do residente com o ausente, da primeira, segunda, terceira e quarta gerações da Família Sem Nome, perdeu-se a história, a cultura, os valores,…

- Ah! - diria um dos participantes, o dia chegou ao fim. Que pena, nem tivemos tempo de conversarmos sobre as nossa vidas!

Mas que grande desencontro!...

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