A Cruz (qual calvário) das Convertidas
Ideias
2021-03-15 às 06h00
Portugal começa hoje a desconfinar de forma gradual. Depois de dois meses fechados em casa, as crianças das creches, do pré-escolar e do ensino básico regressam à escola. O comércio ao postigo reabre. Os cabeleireiros também. Os livros têm agora livre circulação em livrarias e bibliotecas. Pode parecer pouco, mas não é. Porque o vírus continua entre nós. E todos temos de nos unir contra uma quarta vaga.
Há quem defenda que estes anos 20 possam ser uma réplica dos anos 20 do século passado. Assim anunciava o “Courrier International” desta semana. O desconfinamento, a vacinação, os números de infetados a descer... tudo parece fazer acreditar que ultrapassámos o Cabo das Tormentas. Até certo ponto, isso é verdade. Todavia, o balanço desta trágica vaga apenas será feito no final do processo de desconfinamento que hoje se inicia. Aquilo que teremos até ao verão dependerá do que fizermos nas próximas semanas e isso confere a cada um de nós uma responsabilidade colossal.
No livro que chegará no final deste mês às livrarias portuguesas com o título “A Flexa de Apolo: o impacto profundo e duradouro da Covid”, o médico com formação em sociologia Nicholas Christakis avisa que as mudanças não serão repentinas. Ao contrário dos anos loucos do século passado, a retoma económica pode ser mais difícil, a produtividade pode não disparar e o nosso ânimo pode não se revitalizar assim tão depressa. Há uma memória inscrita no nosso corpo, feita de distanciamentos, medos, incertezas, isolamento...
Esta semana, a revista britânica “NewStatesman” escolhia para título de capa “uma nação em luto”. No seu interior, um longo texto fala-nos do luto e da melancolia de milhares de famílias. Um dos especialistas citados é Christakis que lembra que as pandemias têm sempre um forte impacto na saúde mental, mas esta é pior, porque nos tem obrigado a ficar afastados uns dos outros, gerindo várias perdas: de pessoas, de rendimento, de estilos de vida. E a reação a isso é a de uma profunda tristeza. Qualquer governo tem pela frente uma tarefa gigantesca, porque o combate se faz em várias frentes. Uma será sempre a da dor, que deve ser cuidada de forma adequada, porque, se assim for, será também agente de mudança.
Hoje, à semelhança de muitas famílias, deixo o meu filho na escola. Para trás, ficaram dois meses em telescola, lado a lado com o meu trabalho. O balanço que faço da aprendizagem é extremamente positivo, mas sei que pertenço a um grupo pequeno da população cujos filhos têm um excelente enquadramento de ensino. Grande parte dos estudantes não viveu assim estes dias e as consequências disso serão percebidas daqui a algum tempo.
Um ano depois do início da pandemia, a vida mudou muito. E assim permanecerá por um longo tempo. Fico naturalmente satisfeita por termos condições para desconfinar e fico ainda mais descansada pelo regresso do meu filho ao convívio com o professor e com os colegas da escola. Porque o crescimento implica uma componente de interação que nenhuma tecnologia substitui. No entanto, também estou consciente de que tudo terá de ser feito com muito cuidado. Porque ninguém quer um novo confinamento. E isso apenas estará garantido, se todos nos unirmos em combate de uma eventual nova vaga.
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