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Despotismo suave e tirania da maioria

Entre a vergonha e o medo

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Despotismo suave e tirania da maioria

Ideias

2024-11-12 às 06h00

João Marques João Marques

Fatal como o destino, de cada vez que ocorre uma eleição na América, há um palerma que cita Tocqueville. Desta feita o palerma sou eu, sendo que a obra é sempre a mesma “Democracia na América”.
O que Tocqueville viu nos, então recentes, Estados Unidos da América seria seguramente o prelúdio para o que vemos nos agora supostamente indecentes Estados Unidos da América.
O mundo assistiu atónito, se bem que menos chocado do que há oito anos, ao dealbar de uma ultra maioria de Trump na política americana. A vassourada foi de tal monta que hoje o presidente, o congresso e o senado (não esquecendo o Supremo Tribunal de Justiça) estão todos tingidos a vermelho, naquilo que se pode tornar numa passadeira…vermelha, lá está, para um mandato relativamente irrestrito no que toca às mudanças, reformas ou meros caprichos que o (re)novo líder do mundo livre entenda empreender.
No seguimento de uma das mais erráticas e incompetentes gestões de transição de protagonistas que a política mundial já viu, os Democratas ofereceram de mão beijada o poder (quase) absoluto aos republicanos, ou melhor, a Trump.
O que importa agora não é tanto dissecar essa incompetência, mas apontar à inconsequência que a ditou.
Ao longo da última década, para não dizer das últimas décadas, os EUA e, em grande medida a Europa e o mundo ocidental ou ocidentalizado, trilharam um caminho de sentido único e de virtualmente inquestionável matriz. Ou o progressismo (sempre enquadrado nas causas de um fração da sociedade) ou o caos.
A institucionalização deste modelo fez-se por via de lei a qual, ao contrário do típico jogo do rato e do gato onde o legislador faz sempre a figura triste, mas necessária, de acorrer ao prejuízo ao invés de, com um visionarismo trôpego, os antecipar, se fez aprovar por maiorias robustas.
A consagração societária teve o seu auge na famosa e iconoclasta doutrina “Woke”, exportada a rodos para os quatro cantos do mundo, e da qual deveríamos retirar um certo aclaramento resultante do despertar que lhe está implícito.
Entre reparações exigidas a quem não pode ter-se por culpado do prejuízo até ditaduras de minorias, ao arrepio do mais elementar bom senso, este movimento, entabulado em indiscutíveis mandamentos, tornou a sociedade um campo de batalha, deixando apenas espaço para a luta.
Não há lugar a compromisso para quem afirma as suas convicções e causas como inegociáveis. Não há espaço para a política onde o plano é não o do debate, mas o do ditame.
Não existe humanismo quando este se torna arma de arremesso.
O que tem acontecido progressivamente é uma colonização do Estado por uma lógica paternalista, subjugadora do livre-arbítrio e ultra prescritiva que tutela a sociedade ao invés de a regular. Tocqueville via aqui uma espécie de despotismo suave, onde o Estado se permitia ditar dimensões que não lhe competiam e a sociedade com isso se conformava.
Ao mesmo tempo, um outro “risco” da democracia, por admirável que fosse, era o da tirania das maiorias. O jugo opressor dos muitos sobre os poucos, algo que apreendemos como um património negativo assente de um sistema classificado como sendo o pior com a exceção de todos os outros. A formulação de Churchill que resume bem o aspeto inacabado da democracia, mas que a escolhe sobre todos demais modelos de governação, por mais perfeitos que se apresentem.
Essa tirania da maioria, supostamente, haveria de ou poderia condenar as minorias à subalternidade e ao desrespeito pela sua especial circunstância.
Se esse risco se percebe, o que hoje parece acontecer é que à boleia dos avanços civilizacionais inquestionados e inquestionáveis, as minorias governam, por vezes tiranicamente, contra o dissenso das maiorias.
Esta subversão gera o caldo de cultura e potencia a justa indignação de quem vê o bom senso refugiar-se em parte incerta.
O regresso a valores tradicionais, porventura mais conservadores e, para alguns, mais antiquados, é a consequência lógica e natural de quem se vê torpedeado por um mundo que constantemente parece querer atropelar quem nele não se revê.
O silêncio das maiorias, por vergonha de desconformidade com a mensagem oficial que diariamente é passada na imprensa, e a incapacidade de serem promovidos interlocutores políticos que representem essa enorme massa de escondidos, tem o pernicioso efeito de tornar audível, suportável e até elegível o mais boçal dos candidatos. E que não restem dúvidas, Trump é o mais boçal dos candidatos, mas é também quem aproveita a arena deserta do debate político não alinhado para capitalizar com o descontentamento de quem viu apagada a sua voz, marcada como um abcesso retrógrado e desprezível.
A resposta certa a este fenómeno é, então, entrar na onda da boçalidade, para conquistar o espaço perdido para os radicais? Não, pelo contrário, é regressar à moderação e razoabilidade, sem espaços para extremismos e sem conceder perante lutas de vanguarda. Pela minha parte não terão nem despotismo nem tirania, seja de que forma for.

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