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Do nome das coisas e seus complementos

A responsabilidade de todos

Do nome das coisas e seus complementos

Voz aos Escritores

2019-04-19 às 06h00

José Moreira da Silva José Moreira da Silva

Não vou tecer considerações nominalistas sobre universais, nem confrontar Platão com Aristóteles ou Stuart Mill com David Hume. Vou simplesmente pensar na relação que antevejo entre a coisa e o seu nome, entre a coisa e o seu contexto, entre o nome e a sua complementação. Acabo de ver «Le nom des choses», de Van der Avoort Boris, profunda reflexão sobre as implicações da linguagem na forma como percebemos e concebemos o mundo. Perguntar a uma criança por que razão uma orelha é uma orelha e espantar-se com as suas maravilhosas explicações obriga-nos a um constante questionamento: afinal, que relação existe entre as palavras e a realidade, entre a linguagem e o próprio pensamento? Disse Platão, no «Crátilo», que conhecer o nome é conhecer a natureza das coisas. Inverter a formulação, e afirmar que conhecer a natureza da coisa é conhecer o nome, é também pertinente. Tal como é pertinente filosofar infinitamente sobre a essencialidade ou a arbitrariedade do signo linguístico. Podemos mesmo chamar Ferdinand de Saussure e as suas profundas aportações, ou recordar «O nome das coisas», da nossa poetisa Sophia Andresen. Nada disso é, no entanto, importante, se me sento diante de uma flor. Chamo-lhe flor, em apropriação hiperonímica, quando poderia chamar-lhe simplesmente rosa. Porque é vermelha e rosa esta flor que cheiro, que me inebria os olhos, que toco delicadamente como abelha leve em gracioso voo. Olho-a. Onde está o seu nome? Alguém sugeriu que o conhecimento dos nomes não tem um interesse particular, e que o que verdadeiramente importa são os laços emotivos, também utilitários, que estabelecemos com as coisas. O raciocínio é aceitável, se inscrevermos a coisa no meio das outras coisas, num universo gramatical, em que cada elemento complementa sensivelmente todos os outros elementos, e se, no fim, formos conduzidos docemente ao conhecimento da denominação particular. Só se aprende, diz-se, quando se aprende com o coração. E o coração é, também aqui, um complemento das coisas e da sua compreensão. Pouco se sabe da forma como esta categorização natural do mundo, transformada em gramaticalização psicológica, aconteceu ao longo da história humana. Sabe-se das categorias existentes, do nome, do verbo e do adjetivo, próprias para nominar, expor estados e ações, ou para qualificar e descrever estados. E sabe-se que, por artes muito difíceis de explicar, existe um paralelismo entre a complementação natural das coisas e a complementação gramatical dos nomes. A verdade é que, se eu olho a rosa, ou o céu, se sei denominá-la porque a cultura me impôs o signo arbitrário, também sei ver a sua complementação: a rosa vermelha, o céu azul ou de prata. Compreender esta adequação entre a complementação natural e a complementação gramatical é, em termos filosóficos e linguísticos, essencial para a compreensão do mundo, da faculdade que é a linguagem e dos próprios códigos linguísticos. Saber que posso olhar o céu, e que este está azul, cinzento ou de prata, e que «azul», «cinzento» ou «de prata» são essenciais ao céu, ou suas complementações, e compreender que posso linguisticamente inscrevê-las num grupo nominal à minha escolha («O céu azul»), é algo de extraordinário. Apreendido isto, que razões apresentaremos para o aprisionamento da natureza fora da sala de aula? Como impediremos os jovens de ver e cheirar as flores, de ouvir o canto das aves e o rumor dos rios, se eles, de lápis e papel na mão, saberão sentir a natureza, denominá-la, absorver os complementos e registá-los em belas frases que, com absoluta certeza, se transformarão em belos textos, cheios de emoção e sentimento? Mostremos aos jovens que o céu azul é um céu encantador, de encanto ou que encanta, e que estes elementos «azul», «encantador», «de encanto» ou «que encanta» são complementos gramaticais de um núcleo nominal que é a palavra «céu». Estou certo de que compreenderão sem nenhuma dificuldade, tanto as coisas da natureza quanto as coisas fáceis da gramática.

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